Por RUDÁ RICCI
1. O fim de um ciclo
Rui Falcão foi conduzido à presidência nacional do Partido dos Trabalhadores na mesma reunião em que 80% da direção nacional deste partido decidiram acolher o pedido de refiliação de Delúbio Soares. Esta reunião não foi um mero ato administrativo. Foi a consolidação de uma trajetória partidária que exterminou a via de construção de um partido de massas, com forte controle da base militante sobre a estrutura burocrática e até mesmo sobre parlamentares e governantes eleitos. O PT nasceu sob este signo autonomista, uma cultura política que rejeitava o centralismo do processo decisório o que, por tabela, refutava o centralismo democrático, o neologismo do velho comunismo para definir prazos e controles para discussões internas e a adoção da linha justa que aproximava o partido de uma estrutura militarizada.
Rui Falcão foi, desde sempre, a negação desta via autonomista. Desde sempre representou o estilo áspero e anguloso, matemático e certeiro. Sua trajetória pessoal ilustra o caminho do poder daqueles que não nasceram no petismo pela ação de massas, mas pela burocracia e que, em determinado momento, perceberam que a via da estabilidade da profissionalização dos dirigentes desta estirpe era o parlamento.
Em outras palavras, o PT é hoje dirigido majoritariamente por parlamentares. Parlamentares que desconhecem a lógica das ruas e que raramente subordinam seu mandato aos desejos e orientações dos apoiadores regionais ou lutas sociais.
O PT parlamentarista é a expressão de uma casta partidária que se orienta pelo esquadrinhamento de espaços de atuação nos territórios. Uma convivência que se alimenta de muitos dos critérios que os parlamentos brasileiros adotam para definir tamanho e disposição dos gabinetes a partir de prestígios pessoais, força de voto no interior da casa parlamentar, representação partidária e posicionamento na hierarquia das Mesas Diretoras. Nada que se relacione efetivamente à dinâmica social que deveria orientar os mandatos.
O PT, assim, se aproxima do partido de vanguarda da mitologia da esquerda do século XX. Vanguarda que também pode ser compreendida como formação de uma elite política, profissional, apartada dos afazeres cotidianos dos militantes sem poder.
Antes da ascensão destes expoentes da elite partidária, nascida do controle pessoal (ou de pequenos agrupamentos internos que nem sempre se confundiram com correntes de pensamento, embora se utilizassem desta forma de organização para a disputa interna), o partido era dirigido majoritariamente por lideranças sociais provadas nas ruas. Eram, portanto, conhecidos e reconhecidos pela militância partidária, mas também por uma miríade de lideranças sociais locais e também por jornalistas e imprensa que repetidamente estampavam suas fotos em manifestações, em assembléias, em greves, em passeatas e comícios. Eram figuras públicas como Lula, Jacó Bittar, Marina Silva, Chico Mendes, Benedita da Silva, lideranças carismáticas e excelentes oradores, quase sempre portadores de uma invejável capacidade intuitiva que desconcertavam seus oponentes como um drible ilógico de um jogador de futebol. Mesmo os intelectuais petistas daquele período não eram os formuladores de gabinete que se dispunham a criar fórmulas inacessíveis sobre temas herméticos e afetos aos membros da vanguarda partidária. Eram intelectuais que quase sempre se alinhavam às lutas sociais, destrinchando as inovações e aprofundando possibilidades a partir do que as mobilizações populares descortinavam. Foi assim que Paulo Freire, Marilena Chauí, Eder Sader, Alfredo Wagner, Maria Victória Benevides, Francisco Weffort, Zander Navarro e tantos outros foram reconhecidos como “companheiros de lutas” e não como intelectuais orgânicos que orientavam uma nova cultura.
Por estas e por outras que o PT era um partido diferenciado no espectro partidário. Era o outdsider que incomodava a todos, incluindo os partidos de esquerda tradicionais que chegavam a sugerir que se tratava de uma conspiração do regime militar para debelar a liderança comunista e efetivamente de esquerda. Quantos de nós ouvimos, por tantas vezes, que grandes empresas financiavam lideranças operárias petistas que seriam, segundo esta interpretação, uma expressão da aristocracia operária brasileira?
Lula, neste sentido, sempre foi uma incógnita. Combativo e conservador, afável e autoritário, pragmático mas sempre envolvido com a lógica partidária, Lula parecia a expressão do neocorporativismo que foi se instalando no Brasil. Um líder de massas que se enveredou pelas arenas de negociação de políticas públicas. Alguns críticos pouco sofisticados logo tascaram a carcomida tese da “República Sindical”. Aliás, são quase sempre os mesmos que apenas trocam o adjetivo para provocar qualquer articulação mais a esquerda. Um duplo erro (de narração e teoria) já que o espírito republicano é plural e não grupal.
2. Uma elite para trabalhadores
No campo de análise dos pessimistas conservadores, a Teoria das Elites projetou-se desde o início do século XX. Possivelmente o mais polêmico e sintético dos autores desta vertente teórica foi o italiano Gaetano Mosca. Há duas contribuições de Mosca que sustentam certo fatalismo sobre toda organização política: a de que sempre haverá uma classe política organizada que se impõe sobre uma maioria (esta foi a sua principal tese no início de sua obra) e a de que os dirigentes políticos (ministros e parlamentares) são ligados por redes de reciprocidade a ponto de conduzirem sua vida política alheios ao interesse público.
Com efeito, as redes de reciprocidade ou lealdades parlamentares são a tônica da vida parlamentar quando o controle social sobre a política formal é tênue. Um lusco-fusco faz do jogo entre representantes uma relação de cartas marcadas onde a busca de apoios e defesa de interesses corporativos raramente gera um real confronto entre líderes. O confronto de idéias fica restrito às ações espetaculares, a partir da defesa da reserva de mercado eleitoral.
Pareto, outro italiano também membro desta vertente analítica conservadora, sugeriu que a elite política não se define por critério moral, mas pela eficiência, ou seja, pela capacidade de executar uma tarefa ou atividade específica. Interessante como esta observação se aproxima da leitura de Lênin sobre a necessidade de profissionais políticos, sempre acima das massas operárias alienadas, que conduza as tarefas revolucionárias com eficiência de tipo empresarial. A velha e boa descontaminação racional, não afetada pelas paixões da rua e do cotidiano. O partido eficiente é movido por uma vanguarda eficiente e dura, racional e objetiva. O que dá razão ao alemão Robert Michels para quem tal lógica afasta as lideranças partidárias progressivamente das massas que procuram representar.
A direção parlamentar do PT caminha celeremente para esta autonomia de juízo dos dirigentes, expressa nas decisões recentes da sua direção nacional. Como dizia Michels: o amálgama entre vida partidária e vida particular introduz o tema da gratidão. Daí a defesa quase unânime dos pares para absolvição daquele que as ruas condenaram. “Não existe pena perpétua no nosso partido”, dirá algum dos pares que se arroga o direito de verter uma sentença como se fora um juiz togado. Na primeira fase do PT, as decisões deste porte eram prerrogativa da base filiada, como ocorreu na decisão sobre a ida ou não ao Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves ou a decisão de assinar a Constituição de 1988.
Pela esquerda, o tema da formação das elites partidárias também foi objeto de reflexão. A começar pelo próprio Lênin, que em seu último artigo (“Vale quanto Pesa”, que é possível acessar na internet em espanhol, cujo título é “Mas vale poco y bueno”) ataca duramente o burocratismo partidário e chega a fazer mea culpa a respeito do equívoco em confundir Estado-Governo-Partido. O líder bolchevique alinhava as críticas ao excesso de formalismo e a garantia de unidade a partir da cúpula partidária (e não dos acordos forjados no debate interno).
Mais adiante, Trotsky, já no exílio mexicano, escreve uma série de estudos críticos ao burocratismo da era Stálin. Sua obra "A Revolução Traída" procurou teorizar sobre o tema. A partir daí, o tema do burocratismo passou a ser aprofundado pelos trotskistas como um segmento (não uma classe social específica) que possui lógica e interesses próprios. Para Trotsky, a nomenklatura ganha um estatuto político definitivo com a ascensão do fascismo (o que lhe sugere a criação de uma nova articulação internacional dos comunistas, a IV Internacional).
Outro autor do campo marxista que se debruçou sobre o papel da burocracia partidária foi Charles Bettelheim, economista e historiador francês, maoísta e integrante da Nova Esquerda Francesa. Para este autor, na URSS teria emergido uma formação social capitalista de tipo novo, na qual a burocracia teria se constituído numa classe dominante. Tese que seguia a mesma crítica formulada por Tony Cliff, que em seu livro “Capitalismo de Estado na Rússia” sugeriu que o controle da produção estaria todo nas mãos da burocracia partidária, o que excluía qualquer participação efetiva da classe operária do processo de decisão político e do Estado que se configurou após a revolução socialista e que teria como principal orientação ser expressão real do comando dos operários. Os sovietes, cuja tradução é conselhos populares, estariam, assim, banidos do processo decisório do Estado soviético, uma contradição em termos. Cliff introduziu, a partir de suas análises, o conceito de “Capitalismo de Estado”, onde a burocracia partidária substitui o papel do empresariado capitalista.
Ainda que ligeiramente, este balanço ilustra o quanto o tema da politização específica da burocracia partidária exigiu reflexão dos pensadores conservadores e revolucionários de esquerda. Para todo espectro ideológico que o analisou, a burocracia partidária gera tensões internas que cindem o sistema de representação original. De atividade-meio amplia seus espaços de controle a ponto de se tornar atividade-fim, a cúpula política que se auto-representa, cortando o nó górdio que teoricamente sustenta toda estrutura de representação.
As lideranças partidárias de origem burocrática ascendem ao poder pelo temor que impõem, pelo controle e pelos segredos internos que administram. Daí desprezarem todas formas de controle social externo à estrutura burocrática e todos mecanismos de transparência pública.
Rui Falcão, como expressão desta ascensão e transmutação do petismo, não poderia fugir à regra. O novo presidente do PT é refém desta história que se repetiu por diversas vezes na trajetória de algumas experiências de esquerda.
3. De Falcão e Falcões
Não havia como fugir da analogia. Um grupo de formuladores ultra-conservadores da Era Reagan e que ressurgem no governo Bush foi denominado de falcões por atacarem as “pombas”, ou os defensores do multilateralismo. Alguns autores sustentam que o ideólogo desta elite estatal conservadora foi Leo Strauss, para quem é necessário rechaçar toda manifestação de relativismo e pragmatismo. Strauss sugeria, ainda, que para enfrentar a crise moral norte-americana era necessário retomar o mito da Nação que se traduz pelo ataque aos inimigos externos. Donald Rumsfedl e Condoleezza Rice foram dois expoentes desta doutrina que sugeria o domínio mundial norte-americano pelo convencimento ou uso da força bélica. Além da política externa, os falcões construíram uma lógica política baseada na intenção de limitar ainda mais o sistema partidário dos EUA, fortemente enraizado num Estado de partido único, ancorado em altos gastos governamentais (uma inflexão dos falcões da Era Reagan para a Era Bush).
O PT tem seus falcões. Lembremos que Rui Falcão já presidiu o partido em 1994, momento da guinada do petismo na segunda campanha eleitoral de Lula à Presidência da República. Naquele momento, as lideranças sociais até então base moral e participante das formulações estratégicas e programáticas do petismo foram alijadas. O “consenso progressivo” de construção das políticas petistas foi substituído pelo pragmatismo da burocracia partidária, que passou a escolher os formuladores do programa que passariam pelo crivo do marketing eleitoral e a leitura atenta dos falcões.
Lembremos que Rui Falcão foi Secretário de Governo de Marta Suplicy. Sua secretaria acolhia a coordenadoria do orçamento participativo (nas mãos da corrente Democracia Socialista) e a coordenadoria que articulava conselhos de gestão pública (como saúde, assistência social, direitos da criança e adolescente). Esta última coordenadoria ficou nas mãos de expoentes da igreja católica progressista. Os recursos que as duas coordenadorias receberam foram parcos, mas a situação era de penúria em relação á coordenadoria dos conselhos.
Lembremos que quando presidente do PT do município de São Paulo, durante a gestão Luiza Erundina, Falcão liderou uma forte pressão sobre o governo petista. Erundina tinha derrotado a corrente majoritária petista, naquele momento liderada em São Paulo por José Dirceu que tinha, por seu turno, Rui como seu falcão na estrutura burocrática. A relação entre partido e governo petista foi tensa até o final. Não houve trégua. Erundina chegou a montar uma assessoria especial – uma espécie de secretaria adjunta – no interior da Secretaria de Administração Regional, composta por dirigentes indicados pelas quatro principais correntes internas do PT para auxiliar na administração política deste conflito permanente. Eu tive a honra de ser um dos integrantes desta assessoria-secretaria adjunta. E senti diariamente o peso da mão de ferro de Rui Falcão. Um político obstinado, metálico. Possivelmente mantêm na memória as lições de dureza e disciplina férrea de seu período de “partidão” e de combate à ditadura militar.
Lembremos que Rui Falcão conhece José Dirceu desde o período em que o ex-ministro era estudante da PUC-SP e Falcão militava no PCB. E que se aproximaram quando da constituição da Dissidência Comunista de São Paulo, formada por José Roberto Arantes, Antonio Benetazzo, Jeová Assis, Fernando Ruivo e Rui Falcão.
A eleição de Rui Falcão como presidente nacional do PT parece não ter agradado a Presidente Dilma Rousseff. Mas recebeu o aval final de Lula. Falcão foi eleito a partir de um acordo com as correntes internas do partido: Construindo um Novo Brasil (CNB, oriunda da famosa Articulação dos 113), PT de Lutas e de Massa e Novos Rumos. As três somam 56% dos postos do diretório nacional do partido. Falcão é integrante da corrente Novos Rumos o que, teoricamente, dificultaria seus passos para alcançar a direção do partido, já que a corrente majoritária é a CNB. Mas a lógica da burocracia partidária é fundada, como vimos, na gratidão entre pares. O nome até então definido pela CNB para presidir o partido era o do ex-ministro Humberto Costa.
A eleição de Falcão não é um fato isolado nem pequeno. Sua presidência fecha um ciclo do petismo. E inicia uma ação das mais arrojadas: conquistar São Paulo e fechar o cerco sobre o PSDB paulista (algo similar ocorre em Minas Gerais). O lulismo avança a passos largos sobre o país.
Caminhamos para um modelo político de baixa competição pública. O que exige um falcão para dar conta do recado.
O tempo das pombas petistas acabou.
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