Conferências do Estoril 2011 - intervenção do escritor moçambicano Mia Couto.
O texto está disponível no sítio da Rádio Moçambique:
Murar o medo: Porque motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento? - Mia Couto (*)28/10/2011Por Mia Couto (**)
O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demónios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem, servindo como agentes da segurança privada das almas. Nem sempre aqueles que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estava mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejávelcasting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência do país, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.O preço dessa narrativa de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de que há memória. A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.A guerra fria esfriou mas o maniqueismo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a Ocidente. E porque se trata se entidades demoníacas não bastam os seculares meios de governação. Precisamos de intervenção divina, de razões que estão para além de qualquer lógica. O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder.Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manunteção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem para superarmos as ameaças domésticas: precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentar as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho começaria pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um de outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora a natureza, o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinnte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente emergência. Como em qualquer Estado de Sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas incómodas como estas: porque motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento? Porque se gastou, apenas o ano passado, um trilião e meio de dólares com armamento militar? Porque razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exactamente os que mais armas venderam ao regime do Coronel Kadaffi? Todos sabemos como a segurança se sustenta de uma condição básica que é a justiça. Porque motivo então se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?Se queremos resolver (e não apenas discutir) a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que sejam precisos de guerra. Essa arma chama-se fome. Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fracção pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo. Num planeta que nos orgulhamos de ter convertido numa única aldeia, a realidade mais globbalizada é a miséria.Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. A verdade é que sobre grande parte dos habitantes do Planeta pesa uma condenação antecipada pelo simples facto de serem mulheres.A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome. Como militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos “outros”. E porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência nem de legalidade. A incoerência revelada na chamada “Primavera Árabe” de intervir na Líbia e não na Síria ou no Yemen, passa por um simples critério de “segurança internacional”. Não tem que ser discutido.É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A chamada Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões do Norte. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar.Há muros que separam Nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos, do Sul e do Norte, do Ocidente e do Oriente.Acerca do medo global Eduardo Galeano esreveu o seguinte: “Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quem não tem medo da fome, tem medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras”.E se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.
(*) Título da nossa inteira responsabilidade(**) Intervenção no Semenário do Estoril (Portugal), 2011, especial para o jornal Savana (Moçambique)
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