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sábado, 15 de agosto de 2009

O Senado como Arquétipo

Por RUDÁ RICCI

Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa.
E-MAIL: ruda@inet.com.br .
SITE: www.cultiva.org.br . Blog: rudaricci.blogspot.com

1. A Guerra entre verdades míticas


A provocação veio de um artigo de Silvio Back, publicado n’O Globo de 09 de agosto deste ano. Back comparava a Guerra do Contestado com o que ele denomina da atual “Guerra do Senado”. Sugere uma estranha guerra entre a desordem (institucional, do Senado) contra a desordem (social, dos marginalizados pela política institucional e vistos pelos senadores como segmento contestatório). Um país dividido, dual: o institucionalizado e o que não consegue ser nunca instituinte. Mas o artigo não fica por aí. Sustenta que ambos os lados mentem porque ficam na superfície, porque produzem verdades míticas, irreais, que falam de mundos que evidentemente não são equilibrados e justos, mas procuram se vender como se fossem.


Back parece retomar a tese do mito brasileiro: Macunaíma, aquele herói sem nenhum caráter. O monstro “mole e indeciso”, nas palavras de Mario de Andrade. Ficarei numa das pontas deste mito: o Senado.

O historiador José Murilo de Carvalho nos ajuda a desvendar o Senado. Em uma de suas entrevistas revela:

“Dois anos depois de deixar o ministério da Fazenda, Ruy comprou em 1893 um palacete de 30 cômodos na rua São Clemente, no Rio de Janeiro, ao preço de 130 contos de réis. A quantia era enorme, totalmente incompatível com os rendimentos de um senador sem outras fontes de renda. Nessa propriedade com proporções de parque, de nove mil metros quadrados, Ruy e a família viveram até a sua morte, em 1922. A compra da casa causou escândalo e levou Ruy a dar explicações ao Senado. Explicou em discurso famoso que o imóvel fôra comprado sem dinheiro – um amigo lhe emprestara 60 contos de réis, tendo como garantia a hipoteca de metade da casa, e um banco entrara com o resto, garantido pela metade restante da propriedade. Quando Ruy não pôde arcar com as prestações, outro amigo, o capitalista Antonio Martins Marinha, veio em seu socorro. Embora se diga que Ruy pagou os empréstimos, há nessa história amigos demais e cuidados éticos de menos. “O caso é intrincado.”


Mas até tu, Ruy (ou seria Rui)?

José Murilo vai além. Em outro texto revela como o Senado tupiniquim sempre foi Macunaíma (em “Modernização Frustrada: a política de terras no Império”):

“Por outro lado, foram eliminadas no Senado algumas das medidas mais controversas do projeto da Câmara, como sejam o imposto territorial e a perda da propriedade para quem não a registrasse dentro dos prazos (foi substituída por simples multa). Aumentava o tamanho máximo para legitimação de posses para urna sesmaria de cultura ou criação (respectivamente 4.356 ha. e 13.068 ha.). Miguel Calmon ainda tentaria reintroduzir o imposto territorial no último momento mas sem êxito (Jornal do Commercio, 25.07.50). (...) As reformas do regime de posse da terra — e o projeto aprovado na Câmara em 1843 implicava numa autêntico reforma agrária — ficaram sem implementação durante todo o período imperial. O imposto territorial, o mais radical dos dispositivos, foi eliminado pelo Senado.”

O almirante José Celso de Macedo retoma a obra de Afonso de Taunay, “O Senado do Império”, para lembrar que na sua criação, o Senado Imperial tinha mais ou menos as mesmas funções que o atual Senado. Contudo, a eleição de seus membros ocorria a partir de uma lista tríplice, das quais, o Imperador escolhia um a seu bel prazer. Senadores eram eleitos por províncias com as quais não tinham qualquer ligação. Algo muito atual, reconheçamos.
No início da República os senadores passaram a ser eleitos: dois no inicio e, no casuísmo do pacote de abril dos militares, passaram a três. Teoricamente o Senado passou a representar a Federação, supostamente criada em 1891 e, até agora sem funcionar plenamente.

O Senado, contudo, nunca foi popular. Sempre se pautou, em nosso país, uma câmara oligárquica, a mais elitizada das nossas casas parlamentares.

Contestado ou Canudos?

Talvez seja verdade: a Guerra do Senado tem paralelo (o avesso do avesso) com a Guerra do Contestado. Mas não teria também com a Guerra de Canudos? A pergunta tem sentido. Em A Guerra do Fim do Mundo, Vargas Llosa disseca a alma dos homens da ordem de nosso país. Em determinada passagem, desenha a moral do coronel Moreira César, conhecido como “corta-cabeças” por executar cem pessoas a sangue frio durante a Revolução Federalista, em Santa Catarina. A passagem, tendo como figura central um emblema do pensamento de direita, foi assim registrada:

“Encontram Pau Seco deserta de gente, de coisas, de animais. Dois soldados, junto ao tronco sem galhos em que tremula a bandeirinha deixada pela vanguarda, fazem continência. Moreira César freia o cavalo e passa um olhar pelas habitações de barro, cujo interior avista através de portas abertas ou arrancadas. De uma delas emerge uma mulher desdentada, com uma túnica esburacada que deixa ver a pele escura. Duas crianças raquíticas, olhos vidrados, uma delas nua, a barriga inchada, agarram-se ao seu corpo. Olham espantadas os soldados. Moreira César, do alto do cavalo, continua observando-as: aprecem a encarnação do desamparo. Seu rosto se contrai em uma expressão em que misturam a tristeza, a cólera, o rancor. Sem tirar os olhos delas, ordena a uma das escoltas: “Dêem-lhes de comer”. Vira-se para seus lugares-tenentes: “Estão vendo em que estado mantêm o povo de seu país?” Há vibração em sua voz e seus olhos fuzilam. Em um gesto intempestivo, desembainha a espada e a leva ao rosto, como se fosse beijá-la.”

Uma direita atordoada com o mundo real, desencontrado de qualquer mundo idealizado. Existe compaixão no olhar, mas a razão se refugia na espada, na instituição idealizada. Vargas Llosa cita um redemoinho de sensações: tristeza, cólera e rancor. Por que rancor?

Enfim, este parece ser o desenho de nosso Senado, nossa Câmara Alta, que faz de seu espaço uma guerra. Uma guerra entre membros da Corte, que vai às bases como que repetindo a tragédia vivida por Moreira César.

O Contestado também foi um movimento milenarista, ocorrido no início do século XX, na zona serrana de Santa Catarina, passando pelo sul do Paraná. Envolveu populações desencantadas com o mundo (nas palavras de Duglas Teixeira Monteiro, autor d’Os Errantes do Novo Século), por terem vítimas de especulação imobiliária das mais infames. Como concluiu Duglas Monteiro, revelou o abismo cultural de duas civilizações, de dois brasis, sendo um deles autêntico, e outro, europeizado e postiço.

Os dois movimentos – Canudos e Contestado – revelam um mundo desencantado que se reencanta pelo conflito aberto. Torna-se uma guerra santa. E esta base mítica retorna, de tempos em tempos, no Brasil Profundo. É citado como fundamento e motivação das ocupações de terras lideradas pelo MST. A justiça divina cria uma segurança sobrenatural e mítica contra as instituições e justiça mundanas. E aí esses dois mundos não se falam. Não se falam e, como não há diálogo, afirmam-se nas suas verdades. É possível que daí surge a provocação de Silvio Back, quando afirma que ambos, vencidos e vencedores, mentem.

O fato é que o Senado brasileiro não representa o Brasil e, portanto, não representa a federação. Não se trata de equilíbrio porque desde sempre foi desequilibrado. O pacote de abril apenas dramatizou o que todos já sabiam.

Então, retorna a questão: por que não um sistema unicameral?

Idelber Avelar nos lembra, em artigo recente, que são vários os países que possuem estrutura unicameral: China, Portugal, Suécia, Finlândia, Islândia, Dinamarca, Israel, Estônia, Croácia, Cuba, Venezuela, Peru, Equador, Angola, Líbano, Grécia, Guatemala, Honduras, Turquia, Sérvia, Hungria, Coreia do Sul, Ucrânia, Nova Zelândia, Estônia, Macedônia, Chipre, Bulgária e Bangladesh, entre outros. Lembra Avelar: “há sistemas políticos de todo tipo nessa lista, evidentemente.”

Em seguida, o autor faz a distinção do sistema bicameral dos EUA (“os EUA fundaram um sistema em que se faziam necessárias algumas concessões à paridade entre estados desiguais”) com o do Brasil (“no Brasil, o federalismo serve aos interesses de oligarquias, chefes locais, capangas de vários tipos e, acima de tudo, ao PMDB, expressão mor do clientelismo nacional”).

Ora, o sistema bicameral tupiniquim, o Senado, em especial, possui uma lógica neopatrimonialista, tal como sugere Simon Schwartzman: a existência de uma racionalidade de tipo técnica onde o papel do contrato social e da legalidade jurídica seja mínimo ou inexistente. O Senado, enfim, como presenciamos diariamente, não se funda num contrato com a sociedade. Caso contrário, para que atos secretos? Por que no Senado existe tal subversão? Por que é a câmara legislativa mais elitista e apartada da sociedade brasileira. Por este motivo é a casa legislativa mais cara do país.

Retornamos à contradição republicana já revelada por José Murilo de Carvalho n’Os Bestializados: ao se implantar a eleição direta em nosso país reduziu a participação popular, porque manteve a exigência de alfabetização. Por aí, distinguiu-se a sociedade política da sociedade civil. O senado brasileiro alimenta tal distinção. Muito mais que a Câmara de Deputados, mais palpável e visível. Porque o Senado sempre se baseou na cidadania inativa para sobreviver. Senadores permanecem oito anos com seus cargos garantidos. Não necessitam descer ao mundo da sociedade civil. Podem se candidatar ao poder executivo e, mesmo sendo reprovados pelo voto popular, retornam ao seu posto sem qualquer necessidade de reflexão sobre sua performance ou representação real.

Com o Senado, contribuímos para a permanência do autismo político tupiniquim.


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