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1. A Guerra entre verdades míticas
A provocação veio de um artigo de Silvio Back, publicado n’O Globo de 09 de agosto deste ano. Back comparava a Guerra do Contestado com o que ele denomina da atual “Guerra do Senado”. Sugere uma estranha guerra entre a desordem (institucional, do Senado) contra a desordem (social, dos marginalizados pela política institucional e vistos pelos senadores como segmento contestatório). Um país dividido, dual: o institucionalizado e o que não consegue ser nunca instituinte. Mas o artigo não fica por aí. Sustenta que ambos os lados mentem porque ficam na superfície, porque produzem verdades míticas, irreais, que falam de mundos que evidentemente não são equilibrados e justos, mas procuram se vender como se fossem.
Back parece retomar a tese do mito brasileiro: Macunaíma, aquele herói sem nenhum caráter. O monstro “mole e indeciso”, nas palavras de Mario de Andrade. Ficarei numa das pontas deste mito: o Senado.
O historiador José Murilo de Carvalho nos ajuda a desvendar o Senado. Em uma de suas entrevistas revela:
“Dois anos depois de deixar o ministério da Fazenda, Ruy comprou em 1893 um palacete de 30 cômodos na rua São Clemente, no Rio de Janeiro, ao preço de 130 contos de réis. A quantia era enorme, totalmente incompatível com os rendimentos de um senador sem outras fontes de renda. Nessa propriedade com proporções de parque, de nove mil metros quadrados, Ruy e a família viveram até a sua morte, em 1922. A compra da casa causou escândalo e levou Ruy a dar explicações ao Senado. Explicou em discurso famoso que o imóvel fôra comprado sem dinheiro – um amigo lhe emprestara 60 contos de réis, tendo como garantia a hipoteca de metade da casa, e um banco entrara com o resto, garantido pela metade restante da propriedade. Quando Ruy não pôde arcar com as prestações, outro amigo, o capitalista Antonio Martins Marinha, veio em seu socorro. Embora se diga que Ruy pagou os empréstimos, há nessa história amigos demais e cuidados éticos de menos. “O caso é intrincado.”
Mas até tu, Ruy (ou seria Rui)?
José Murilo vai além. Em outro texto revela como o Senado tupiniquim sempre foi Macunaíma (em “Modernização Frustrada: a política de terras no Império”):
“Por outro lado, foram eliminadas no Senado algumas das medidas mais controversas do projeto da Câmara, como sejam o imposto territorial e a perda da propriedade para quem não a registrasse dentro dos prazos (foi substituída por simples multa). Aumentava o tamanho máximo para legitimação de posses para urna sesmaria de cultura ou criação (respectivamente 4.356 ha. e 13.068 ha.). Miguel Calmon ainda tentaria reintroduzir o imposto territorial no último momento mas sem êxito (Jornal do Commercio, 25.07.50). (...) As reformas do regime de posse da terra — e o projeto aprovado na Câmara em 1843 implicava numa autêntico reforma agrária — ficaram sem implementação durante todo o período imperial. O imposto territorial, o mais radical dos dispositivos, foi eliminado pelo Senado.”
O almirante José Celso de Macedo retoma a obra de Afonso de Taunay, “O Senado do Império”, para lembrar que na sua criação, o Senado Imperial tinha mais ou menos as mesmas funções que o atual Senado. Contudo, a eleição de seus membros ocorria a partir de uma lista tríplice, das quais, o Imperador escolhia um a seu bel prazer. Senadores eram eleitos por províncias com as quais não tinham qualquer ligação. Algo muito atual, reconheçamos.
No início da República os senadores passaram a ser eleitos: dois no inicio e, no casuísmo do pacote de abril dos militares, passaram a três. Teoricamente o Senado passou a representar a Federação, supostamente criada em 1891 e, até agora sem funcionar plenamente.
O Senado, contudo, nunca foi popular. Sempre se pautou, em nosso país, uma câmara oligárquica, a mais elitizada das nossas casas parlamentares.
Contestado ou Canudos?
Talvez seja verdade: a Guerra do Senado tem paralelo (o avesso do avesso) com a Guerra do Contestado. Mas não teria também com a Guerra de Canudos? A pergunta tem sentido. Em A Guerra do Fim do Mundo, Vargas Llosa disseca a alma dos homens da ordem de nosso país. Em determinada passagem, desenha a moral do coronel Moreira César, conhecido como “corta-cabeças” por executar cem pessoas a sangue frio durante a Revolução Federalista, em Santa Catarina. A passagem, tendo como figura central um emblema do pensamento de direita, foi assim registrada:
“Encontram Pau Seco deserta de gente, de coisas, de animais. Dois soldados, junto ao tronco sem galhos em que tremula a bandeirinha deixada pela vanguarda, fazem continência. Moreira César freia o cavalo e passa um olhar pelas habitações de barro, cujo interior avista através de portas abertas ou arrancadas. De uma delas emerge uma mulher desdentada, com uma túnica esburacada que deixa ver a pele escura. Duas crianças raquíticas, olhos vidrados, uma delas nua, a barriga inchada, agarram-se ao seu corpo. Olham espantadas os soldados. Moreira César, do alto do cavalo, continua observando-as: aprecem a encarnação do desamparo. Seu rosto se contrai em uma expressão em que misturam a tristeza, a cólera, o rancor. Sem tirar os olhos delas, ordena a uma das escoltas: “Dêem-lhes de comer”. Vira-se para seus lugares-tenentes: “Estão vendo em que estado mantêm o povo de seu país?” Há vibração em sua voz e seus olhos fuzilam. Em um gesto intempestivo, desembainha a espada e a leva ao rosto, como se fosse beijá-la.”
Então, retorna a questão: por que não um sistema unicameral?
Idelber Avelar nos lembra, em artigo recente, que são vários os países que possuem estrutura unicameral: China, Portugal, Suécia, Finlândia, Islândia, Dinamarca, Israel, Estônia, Croácia, Cuba, Venezuela, Peru, Equador, Angola, Líbano, Grécia, Guatemala, Honduras, Turquia, Sérvia, Hungria, Coreia do Sul, Ucrânia, Nova Zelândia, Estônia, Macedônia, Chipre, Bulgária e Bangladesh, entre outros. Lembra Avelar: “há sistemas políticos de todo tipo nessa lista, evidentemente.”
Em seguida, o autor faz a distinção do sistema bicameral dos EUA (“os EUA fundaram um sistema em que se faziam necessárias algumas concessões à paridade entre estados desiguais”) com o do Brasil (“no Brasil, o federalismo serve aos interesses de oligarquias, chefes locais, capangas de vários tipos e, acima de tudo, ao PMDB, expressão mor do clientelismo nacional”).
Com o Senado, contribuímos para a permanência do autismo político tupiniquim.
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