Profª. Elaine Monteiro
Universidade Federal Fluminense/UFF
Janeiro de 2008
Universidade Federal Fluminense/UFF
Janeiro de 2008
No exercício de tentarmos nos situar na sociedade de hoje como servidores públicos, não podemos deixar de problematizar o significado do fato de sermos servidores públicos no âmbito municipal e em uma cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro.
É comum, em nossa sociedade, associar o urbano, a cidade grande, a capital ao desenvolvido, e o rural, a cidade do interior ao atrasado, àquele lugar que não tem recursos e que nada vale. O bonito, o desenvolvido, o avançado é o Shopping Center e não o pequeno comércio, as lojas de rua, cujos donos conhecemos, de quem somos conhecidos e onde ainda podemos comprar na caderneta. O “moderno” é o shopping, é o grande magazine, muitas vezes construídos em cidades do interior e “encalhados”, cheios de lojas vazias ou de lojas que abrem e fecham porque não atendem as necessidades locais. O “velho”, o nosso patrimônio histórico e cultural, as nossas casas, devem ser derrubadas para dar lugar ao “moderno”, aos grandes prédios de apartamentos, muitas vezes desnecessários e incompatíveis com a realidade, as necessidades e a paisagem local. Talvez precisemos, mais do que nunca, nos perguntar: o que vale, o que realmente está em jogo nos dias de hoje, quem somos nós e o que podemos fazer?
A resposta, mesmo que parcial, a estas perguntas pode nos dar a dimensão do nosso valor e sinalizar caminhos, objetivos e condutas a seguir no exercício de nossas funções como servidores públicos. Se soubermos onde queremos chegar, que sociedade queremos deixar para as futuras gerações, poderemos, de dentro do Estado, fazer o nosso trabalho e contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e democrática.
O que muitas vezes não percebemos, ou não querem que vejamos, é o fato de que o servidor público que trabalha em município “rural”, do interior, pode estar em uma enorme situação de vantagem frente aos dilemas colocados à sociedade e ao Estado nos dias de hoje. Em Miracema, como nas cidades vizinhas, todos têm “um pé na roça”, vieram da roça, moraram, um dia, na roça, têm um parente que mora na roça, vão à roça nos finais de semana. Na roça, que hoje é comercial e simbolicamente desvalorizada pela sociedade em geral, estão as origens das pessoas que hoje vivem no município, sua história, sua cultura, seus valores.
É comum encontrarmos um pouquinho da roça nos quintais das casas da cidade, seja com a criação de galinhas, com o cultivo de plantas, ou com a cozinha de roça, que fica nos fundos da casa. Mesmo que muitos não trabalhem mais a terra, a roça continua dando aos que vão e vêm seus frutos, legumes, verduras, mandioca, leite, ovos, queijo, e muito mais, momentos de festa, de amizade, de lazer e diversão. A roça deu a Miracema, por exemplo, um patrimônio cultural riquíssimo, reconhecido nacionalmente, como o Caxambu, que recebeu o título do Ministério da Cultura de Patrimônio Cultural do Brasil, como as Folias de Reis e os Bois Pintadinhos. A roça está na cidade com seus valores, potencialidades a serem exploradas e laços de solidariedade.
Se pararmos para pensar, em Miracema, ninguém morre de fome, as pessoas se conhecem. Se alguém está em uma situação difícil, as pessoas se juntam para encontrar alguma forma de ajudar. Há escolas e serviços de saúde para todos. As características do próprio município, principalmente sua herança rural, diferente daquilo que se costumou preconizar, propiciam a articulação de redes informais de proteção. Cabe sim ao servidor público articular redes de proteção social que garantam direitos a todos, sem apadrinhamentos, sem clientelismo, sem toma lá dá cá, como também é muito comum em cidades do interior, em função da proximidade das relações entre as pessoas e dos poderes estabelecidos.
Devemos poder e saber reconhecer que há uma forte herança cultural que pode ser aproveitada e trabalhada de dentro do Estado para responder aos interesses e necessidades da população. Não há, no Estado, apenas a herança da cultura das apropriações privadas do que é público. Nós somos parte da sociedade e somos trabalhadores do Estado. Há em nós também a herança de uma sociedade que resiste, sobrevive, tem valores e potencialidades trazidas em sua história que devemos conhecer e valorizar para com ela trabalhar.
O Professor José Eli da Veiga, no livro “Cidades Imaginárias – o Brasil é menos urbano do que se calcula”, desconstrói, a partir de estudos econômicos e de estudos comparativos com os países do chamado “Primeiro Mundo”, essa idéia que nos foi passada de que o rural deve ser urbanizado. Ele demonstra que das 5507 sedes de municípios existentes no Brasil no ano de 2000, 1176 tinham menos de dois mil habitantes, 3887 tinham menos de dez mil habitantes e 4642 tinham menos de vinte mil habitantes, todas com o estatuto legal de cidade idêntico ao que é atribuído aos municípios dos grandes centros urbanos. Todas as pessoas que vivem nesses municípios, mesmo nos pequenos distritos, são contadas oficialmente como urbanas, o que alimenta a falsa idéia de que o Brasil teria atingido, em 2000, um grau de 81,2% de urbanização.
A partir do questionamento desses dados e de outros indicadores, o professor afirma que há um Brasil essencialmente rural formado por 80% dos municípios do país, onde vive 30% da população. Ele demonstra ainda o quanto é falsa a idéia de que há uma tendência ao esvaziamento do campo. Pelo contrário, como aconteceu com vários países do Primeiro Mundo, a tendência é de uma ocupação cada vez maior do campo, com novos modelos de desenvolvimento desenhados a partir das realidades locais e regionais, que atendam as necessidades da população, inclusive a dos grandes centros urbanos que se muda para o interior, na busca pela qualidade de vida. Na Noruega, por exemplo, mais da metade dos habitantes vivem em regiões essencialmente rurais, 38% em regiões relativamente rurais e 11% em regiões urbanas.
O modelo de desenvolvimento, neste contexto, não pode ser o modelo do urbano, do grande centro, temos que encontrar nosso caminho a partir do reconhecimento e da valorização daquilo que somos. Ao contrário do que se imagina, o caminho para a construção de uma sociedade melhor pode estar nas áreas rurais e não nos grandes centros urbanos. Tudo dependerá do modelo de desenvolvimento sustentável que iremos construir em nossas localidades e regiões, de forma articulada com os municípios vizinhos. Ou ainda, antes disso, se queremos e se vamos construir esse modelo, definir e traçar nosso próprio caminho, a partir da valorização do que somos e do que temos, ou se vamos continuar nos espelhando nos grandes centros urbanos e dizendo que nada somos e nada temos comparativamente a eles.
O Estado Democrático de Direito, que garante políticas públicas universais e concebe o cidadão como um cidadão pleno, foi conquistado pela sociedade brasileira com a Constituição Federal de 1988, que universaliza os direitos que antes atendiam a apenas uma parcela da população. Esta mesma Constituição garante espaços democráticos de elaboração e gestão das políticas públicas em todas as áreas, os Conselhos, que devem contar com a participação de representantes da sociedade e do Estado. O Estado executa as políticas elaboradas no âmbito dos Conselhos, que são monitoradas e fiscalizadas pelo mesmo. Todas as necessidades e projetos da sociedade devem ser objeto de discussão nos conselhos de saúde, da educação, de cultura, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, de assistência social, da criança e do adolescente, etc., com efetiva representação da sociedade, em uma interlocução direta com o Estado.
Cabe a nós, servidores públicos, negociar com os governos nossos projetos de sociedade, pautar a definição de políticas públicas em todas as áreas, educação, saúde, meio ambiente, trabalho, assistência social, cultura, esporte e lazer, habitação, transportes, turismo, com objetivo de atender as necessidades da população e decidir, junto com esta população e com os governantes, que herança queremos deixar para as próximas gerações.
*Esse artigo foi publicado no jornal "O Porta Voz".
É comum, em nossa sociedade, associar o urbano, a cidade grande, a capital ao desenvolvido, e o rural, a cidade do interior ao atrasado, àquele lugar que não tem recursos e que nada vale. O bonito, o desenvolvido, o avançado é o Shopping Center e não o pequeno comércio, as lojas de rua, cujos donos conhecemos, de quem somos conhecidos e onde ainda podemos comprar na caderneta. O “moderno” é o shopping, é o grande magazine, muitas vezes construídos em cidades do interior e “encalhados”, cheios de lojas vazias ou de lojas que abrem e fecham porque não atendem as necessidades locais. O “velho”, o nosso patrimônio histórico e cultural, as nossas casas, devem ser derrubadas para dar lugar ao “moderno”, aos grandes prédios de apartamentos, muitas vezes desnecessários e incompatíveis com a realidade, as necessidades e a paisagem local. Talvez precisemos, mais do que nunca, nos perguntar: o que vale, o que realmente está em jogo nos dias de hoje, quem somos nós e o que podemos fazer?
A resposta, mesmo que parcial, a estas perguntas pode nos dar a dimensão do nosso valor e sinalizar caminhos, objetivos e condutas a seguir no exercício de nossas funções como servidores públicos. Se soubermos onde queremos chegar, que sociedade queremos deixar para as futuras gerações, poderemos, de dentro do Estado, fazer o nosso trabalho e contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e democrática.
O que muitas vezes não percebemos, ou não querem que vejamos, é o fato de que o servidor público que trabalha em município “rural”, do interior, pode estar em uma enorme situação de vantagem frente aos dilemas colocados à sociedade e ao Estado nos dias de hoje. Em Miracema, como nas cidades vizinhas, todos têm “um pé na roça”, vieram da roça, moraram, um dia, na roça, têm um parente que mora na roça, vão à roça nos finais de semana. Na roça, que hoje é comercial e simbolicamente desvalorizada pela sociedade em geral, estão as origens das pessoas que hoje vivem no município, sua história, sua cultura, seus valores.
É comum encontrarmos um pouquinho da roça nos quintais das casas da cidade, seja com a criação de galinhas, com o cultivo de plantas, ou com a cozinha de roça, que fica nos fundos da casa. Mesmo que muitos não trabalhem mais a terra, a roça continua dando aos que vão e vêm seus frutos, legumes, verduras, mandioca, leite, ovos, queijo, e muito mais, momentos de festa, de amizade, de lazer e diversão. A roça deu a Miracema, por exemplo, um patrimônio cultural riquíssimo, reconhecido nacionalmente, como o Caxambu, que recebeu o título do Ministério da Cultura de Patrimônio Cultural do Brasil, como as Folias de Reis e os Bois Pintadinhos. A roça está na cidade com seus valores, potencialidades a serem exploradas e laços de solidariedade.
Se pararmos para pensar, em Miracema, ninguém morre de fome, as pessoas se conhecem. Se alguém está em uma situação difícil, as pessoas se juntam para encontrar alguma forma de ajudar. Há escolas e serviços de saúde para todos. As características do próprio município, principalmente sua herança rural, diferente daquilo que se costumou preconizar, propiciam a articulação de redes informais de proteção. Cabe sim ao servidor público articular redes de proteção social que garantam direitos a todos, sem apadrinhamentos, sem clientelismo, sem toma lá dá cá, como também é muito comum em cidades do interior, em função da proximidade das relações entre as pessoas e dos poderes estabelecidos.
Devemos poder e saber reconhecer que há uma forte herança cultural que pode ser aproveitada e trabalhada de dentro do Estado para responder aos interesses e necessidades da população. Não há, no Estado, apenas a herança da cultura das apropriações privadas do que é público. Nós somos parte da sociedade e somos trabalhadores do Estado. Há em nós também a herança de uma sociedade que resiste, sobrevive, tem valores e potencialidades trazidas em sua história que devemos conhecer e valorizar para com ela trabalhar.
O Professor José Eli da Veiga, no livro “Cidades Imaginárias – o Brasil é menos urbano do que se calcula”, desconstrói, a partir de estudos econômicos e de estudos comparativos com os países do chamado “Primeiro Mundo”, essa idéia que nos foi passada de que o rural deve ser urbanizado. Ele demonstra que das 5507 sedes de municípios existentes no Brasil no ano de 2000, 1176 tinham menos de dois mil habitantes, 3887 tinham menos de dez mil habitantes e 4642 tinham menos de vinte mil habitantes, todas com o estatuto legal de cidade idêntico ao que é atribuído aos municípios dos grandes centros urbanos. Todas as pessoas que vivem nesses municípios, mesmo nos pequenos distritos, são contadas oficialmente como urbanas, o que alimenta a falsa idéia de que o Brasil teria atingido, em 2000, um grau de 81,2% de urbanização.
A partir do questionamento desses dados e de outros indicadores, o professor afirma que há um Brasil essencialmente rural formado por 80% dos municípios do país, onde vive 30% da população. Ele demonstra ainda o quanto é falsa a idéia de que há uma tendência ao esvaziamento do campo. Pelo contrário, como aconteceu com vários países do Primeiro Mundo, a tendência é de uma ocupação cada vez maior do campo, com novos modelos de desenvolvimento desenhados a partir das realidades locais e regionais, que atendam as necessidades da população, inclusive a dos grandes centros urbanos que se muda para o interior, na busca pela qualidade de vida. Na Noruega, por exemplo, mais da metade dos habitantes vivem em regiões essencialmente rurais, 38% em regiões relativamente rurais e 11% em regiões urbanas.
O modelo de desenvolvimento, neste contexto, não pode ser o modelo do urbano, do grande centro, temos que encontrar nosso caminho a partir do reconhecimento e da valorização daquilo que somos. Ao contrário do que se imagina, o caminho para a construção de uma sociedade melhor pode estar nas áreas rurais e não nos grandes centros urbanos. Tudo dependerá do modelo de desenvolvimento sustentável que iremos construir em nossas localidades e regiões, de forma articulada com os municípios vizinhos. Ou ainda, antes disso, se queremos e se vamos construir esse modelo, definir e traçar nosso próprio caminho, a partir da valorização do que somos e do que temos, ou se vamos continuar nos espelhando nos grandes centros urbanos e dizendo que nada somos e nada temos comparativamente a eles.
O Estado Democrático de Direito, que garante políticas públicas universais e concebe o cidadão como um cidadão pleno, foi conquistado pela sociedade brasileira com a Constituição Federal de 1988, que universaliza os direitos que antes atendiam a apenas uma parcela da população. Esta mesma Constituição garante espaços democráticos de elaboração e gestão das políticas públicas em todas as áreas, os Conselhos, que devem contar com a participação de representantes da sociedade e do Estado. O Estado executa as políticas elaboradas no âmbito dos Conselhos, que são monitoradas e fiscalizadas pelo mesmo. Todas as necessidades e projetos da sociedade devem ser objeto de discussão nos conselhos de saúde, da educação, de cultura, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, de assistência social, da criança e do adolescente, etc., com efetiva representação da sociedade, em uma interlocução direta com o Estado.
Cabe a nós, servidores públicos, negociar com os governos nossos projetos de sociedade, pautar a definição de políticas públicas em todas as áreas, educação, saúde, meio ambiente, trabalho, assistência social, cultura, esporte e lazer, habitação, transportes, turismo, com objetivo de atender as necessidades da população e decidir, junto com esta população e com os governantes, que herança queremos deixar para as próximas gerações.
*Esse artigo foi publicado no jornal "O Porta Voz".
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