Por RUDÁ RICCI
Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa. E-MAIL: ruda@inet.com.br . SITE: www.cultiva.org.br . Blog: rudaricci.blogspot.com
- Um sistema partidário com baixo vínculo com o eleitor
Susan Sontag afirmou, em 1957, que o mundo estaria atulhado de instituições mortas. Perguntava-se: “quem entre nós levantaria um dedo se a nossa universidade fosse ameaçada, ou se as sinagogas dos Estados Unidos fossem expropriadas pelo general Eisenhower; quem defenderia o Estado-nação, se não fôssemos convocados à força?”
Lembrei-me desta provocação quando pensava sobre este breve artigo. Pensei de início se nosso sistema partidário é intrínsecamente pouco legítimo (e, portanto, constituído por “instituições mortas”, ou seja, pouco institucionalizado) ou se se alimentava de certa apatia cidadã, o que alguns autores denominam de “cidadania passiva”. Este é o mote deste artigo.
Há teorias que já são consideradas clássicas nos estudos de sistemas partidários. Este é o caso de Sartori ou Diverger. Scott Mainwaring (University of Notre Dame, EUA) e Mariano Torçal (Universitat Pompeu Fabra, Espanha) produziram um instigante estudo a respeito (“Teoria e institucionalização dos sistemas partidários após a terceira onda de democratização”, revista Opinião Pública, volume 11, n. 2, Campinas, outubro de 2005) que nos ajuda a compreender um pouco esta teoria e a refletir sobre o sistema brasileiro.
A primeira questão que emerge é a da estabilidade do sistema que gera sustentabilidade dos partidos num país. Os autores sugerem que há grandes diferenças entre as democracias instaladas a partir de 1987 e as democracias tradicionais, de países industriais avançados. Onde há renda per capita maior, o sistema é mais estável. Obviamente porque há uma relação entre estabilidade pessoal, do eleitor, e o desempenho dos partidos na condução das políticas públicas que garantem esta estabilidade. Trata-se de verificar a competência dos partidos.
Mas os autores destacam um segundo elemente a respeito da estabilidade dos sistemas partidários: o enraizamento dos vínculos dos eleitores com candidatos. E aí, começamos a patinar. As democracias pós-78 (período de democratização mundial) possuem vínculos mais frágeis. Este é nosso caso. Os autores afirmam que países como o nosso escolhem os candidatos com base em suas características pessoais, sem levar em conta o partido, ideologia ou questões programáticas. Algo que é recorrente nos estudos sobre política brasileira. É o nosso personalismo, legado da colonização portuguesa. O que possibilita o surgimento de candidatos out-siders, como foi o caso de Collor ou até mesmo Enéas. Este também foi o caso de Fujimori, no Peru, ou Chávez, na Venezuela.
Samuel Huntington definia: "institucionalização é o processo pelo qual organizações e procedimentos adquirem valor e estabilidade". O problema desta afirmação é a redução do mundo político à lógica interna das instituições, como se prescindissem de vínculos externos, com a sociedade civil. Esta concepção do sistema partidário como mônada faz coro à lógica funcionalista das mais reduzidas, onde os partidos se tornam auto-referentes. Não haveria necessidade de representação fora dos períodos eleitorais.
Mainwaring e Torçal identificam sistemas partidários muito estáveis (Estados Unidos, Austrália etc.) e extremamente voláteis (Ucrânia, Letônia, Romênia, Peru, Rússia, Polônia e Estônia). Afirmam:
“a mudança eleitoral é, em média, muito maior nas democracias e semi-democracias em desenvolvimento do que nas democracias industriais avançadas. Nos Estados Unidos, o resultado da eleição anterior para a câmara baixa serve como excelente preditor do resultado da eleição subseqüente por partido, com um erro médio de apenas 3,2%. Em contraste, na Ucrânia, o procedimento idêntico oferece pouca capacidade de previsão, com um erro médio de 59,2% (dezoito vezes maior do que nos EUA). Lipset e Rokkan (1967) caracterizaram os sistemas partidários da Europa Ocidental como "congelados". Ao contrário, muitos sistemas partidários contemporâneos em regimes políticos competitivos são altamente fluidos. Em geral, os países mais ricos possuem volatilidade eleitoral menor. O PIB per capita foi um preditor ainda mais forte da volatilidade, respondendo por 60,6% da variação nos escores de volatilidade.”
A estabilidade verificada pode, ainda, sob a ótica da sociedade civil, revelar pouca identidade com o cidadão (no caso dos sistemas com baixa estabilidade) ou mesmo apatia oi cinismo do cidadão em virtude do sistema partidário congelar-se e obstruir os vasos comunicantes com o conjunto da sociedade civil, criando um pequeno eleitorado cativo, pouco representativo da sociedade como um todo (caso dos sistemas mais estáveis). Esta argumentação é aferida pelos autores a partir do que denominam de segunda dimensão da institucionalização do sistema partidário: a ancoragem dos partidos na sociedade. “Em sistemas partidários mais institucionalizados, os partidos criam raízes sociais fortes e estáveis. Onde isso acontece, a maioria dos eleitores sente-se ligado a um partido e vota regularmente em seus candidatos”, sugerem. Contudo, as diferenças entre os países no que se refere ao voto ideológico são enormes. E está mais presente (a predileção pela posição esquerda-direita) em países com maior estabilidade do sistema partidário, como se percebe na tabela:
O fato é que partidos com sistema partidário mais estável tendem à polarização e/ou ao sistema de poucos partidos dominantes. Na Europa é comum se referir aos vínculos históricos (quase sempre referências ao período de resistência ao fascismo ou reação ao estatismo nos anos 80) como definidores da opção dos eleitores, criando uma espécie de “voto anacrônico” ou “inércia eleitoral”.
Mas, e no Brasil?
2. O PMDB como demiurgo do sistema partidário brasileiro
E aí ingressamos no voto baseado nas características pessoais dos candidatos. Os dois autores utilizados como referência neste artigo vêm ao nosso auxílio, novamente:
“Líderes e personalização tornaram-se cada vez mais importantes em resultados de eleições, mesmo em países com sistemas de governo parlamentaristas, constituindo o fenômeno chamado de "presidencialização das campanhas eleitorais modernas". Nas democracias industriais avançadas, a avaliação dos líderes pelos cidadãos contém componentes programáticos, ideológicos ou de identificação partidária. Nos sistemas partidários fluidos, o personalismo desprovido de componentes programáticos e ideológicos desempenha usualmente um papel muito maior no voto (SILVEIRA, 1998). Em sistemas mais institucionalizados, é mais provável que os eleitores se identifiquem com um partido, e os partidos dominam os padrões de recrutamento e deliberação política. Em sistemas fluidos, muitos eleitores escolhem mais de acordo com a personalidade do que com o partido, políticos antipartidos têm mais chance de ganhar eleições e o populismo e a antipolítica são mais comuns. A cena política é dominada mais por personalidades do que por partidos. (...) Um modo de avaliar a importância do personalismo em campanhas eleitorais são os dados sobre os candidatosoutsiders à presidência. Candidatos a presidente eleitoralmente competitivos, sejam independentes ou de partidos novos, refletem um alto grau de personalismo e a abertura dos eleitores para candidaturas externas aos partidos estabelecidos. Por motivos operacionais, definimos esses candidatos outsiders como independentes (sem filiação partidária) ou que pertencem a um partido que obteve menos de 5% dos votos para a câmara baixa na eleição anterior e não apresentaram candidatura à presidência em qualquer eleição antes da anterior.”
O que dizer do Brasil? Como explicar um país com fortes laços personalistas entre políticos e eleitores, mas com um sistema partidário que tende a certa estabilidade, embora as instituições políticas sejam pouco legítimas ou reconhecidas entre os cidadãos? Candidatos outsiders com peso eleitoral são intermitentes na vida política nacional. Mas na história recente, surgem e desaparecem em igual velocidade, sem deixar rastros ou estruturas organizacionais minimamente sólidas. O que leva à dúvida: que país é esse?
Uma possível resposta é nosso grau de cinismo, fundada na profunda desconfiança com tudo o que é público. Neste caso, viveríamos uma crise institucional latente, uma anomia leve ou pouco perceptível. O que criaria um importante input ao sistema partidário, facilitando seu deslocamento para um sistema fechado ao estilo de Robert Michels.
Mas poderíamos viver sob a égide de uma nação multifacetada (ainda que cínica), cuja cultura política não se unifica. Neste caso, um partido omnibus como o PMDB seria o mais nacional e adaptado de todos integrantes de nosso sistema partidário. Obviamente que por se amoldar aos relevos dos territórios regionais e locais, não consegue empolgar a nação. Mas é o mais popular partido, em termos de voto e representantes eleitos. Serão outros partidos, mais vinculados aos extremos dos temas nacionais que catalisarão as paixões. Mas todos tendem para o PMDB, não exatamente para o centro do espectro partidário, mas para a acomodação das diferenças continentais do Brasil.
Se retomarmos os clássicos, poderíamos nos perguntar se no Brasil caberia a distinção entre partidos de quadros ou de massas. No caso dos partidos de quadros, segundo Diverger, teríamos lideranças notáveis, de alto prestígio e influência moral. Teríamos, hoje, no Brasil, algo do gênero? Analistas sugerem que este tipo de partido sucumbiu ao longo do século XX, justamente em virtude da emergência da comunicação de massas e marketing político. Mas teríamos, então, a marca dos partidos de massas? Tais partidos foram construídos pelo movimento socialista (mais tarde, partidos comunistas e fascistas) e se espraiaram em países da América Latina, como o México. Diverger sugere que seriam partidos rígidos, voltados para a manutenção da ordem interna. No Brasil, tivemos recentemente algo próximo com o surgimento do PT. Mas, nos dias atuais, haveria algum traço desta possibilidade?
O Brasil teria, na verdade, partidos dominantes, com claro destaque para PT, PSDB e PMDB. Mas o partido culturalmente (em termos de estabilidade e influência sobre a lógica do sistema partidário brasileiro) dominante é o PMDB. Não apenas porque é o fiel da balança entre os três partidos, mas porque é o maior partido e se tornou uma força centrípeta em toda prática partidária do país. A peculiar identidade com o eleitorado brasileiro se dá pela sua fragmentação, pela sua falta de unidade (evidente, por sinal). Algo que foge da percepção das teorias totalizantes que embasam os estudos sobre sistema partidário.
Há, evidentemente, uma fortíssima polarização eleitoral entre PT e PSDB. Mas que não se transforma em bipartidarismo, mas mera polarização em processos eleitorais. O PMDB continua angariando votos em todo território nacional, fazendo o maior número de prefeitos e vereadores. Assim, temos um bipartidarismo aparente, cujo elemento central, surpreendentemente, é um terceiro partido. E não temos a tendência de um multipartidarismo se transformando em bipartidarismo.
Também não se trata de um sistema multipartidário, mesmo moderado. A coalizão presidencialista montada pelo lulismo pode criar esta ilusão. Mas, ainda assim, a lógica do sistema continua vinculada à lógica multifacetada do PMDB.
Até então, as teorias sobre sistemas partidários focaram a análise na eficiência dos partidos. Este critério foi tipicamente empregado em todos estudos e formulações de políticas públicas até os anos 80. A partir daí, agregaram-se conceitos como efetividade e relevância cultural. O que amplia a reflexão sobre a lógica e sustentabilidade de um sistema partidário. Porque um partido pode ser eficiente eleitoralmente, mas não gerar identidade política.
Em suma, a tendência é esta: o sistema partidário brasileiro possui um forte atrativo à oligopolização. No máximo, três partidos dominantes, mas que não se diferem significativamente. Uma mistura das dificuldades de arranjo em país de dimensões continentais com – seria possível? - o "habitus" neopatrimonialista. Convergimos para ser um grande PMDB. As inovações são sugadas para este sistema dominante, um mosaico de intenções e ideologias num só partido. Um arranjo. O eleitor ficará cada vez mais escanteado porque (como já ocorre) não terá opções. Será convidado a aderir.
Porque, todos sabemos, com o presidencialismo híbrido que temos, nenhum executivo consegue governar sem comprar votos e acordos. O que parece força é fraqueza. Os casos do lulismo e Aécio são reveladores. O lulismo destruiu o petismo. Aécio Neves, que parecia uma estrela ascendente, foi traído pelas lideranças regionais mineiras nas eleições municipais de outubro de 2008.
Porque, todos sabemos, com o presidencialismo híbrido que temos, nenhum executivo consegue governar sem comprar votos e acordos. O que parece força é fraqueza. Os casos do lulismo e Aécio são reveladores. O lulismo destruiu o petismo. Aécio Neves, que parecia uma estrela ascendente, foi traído pelas lideranças regionais mineiras nas eleições municipais de outubro de 2008.
Enfim, quem dirige a política do sistema partidário são lideranças menores, espalhadas por este Grande Portugal, que conformam o mosaico de estilhaços que um dia foi um espelho chamado Brasil.
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