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sábado, 13 de setembro de 2014

DEMOCRACIA PARTICIPATIVA




Rudá Ricci
Fórum DCA de São Paulo
Escola Nacional Florestan Fernandes, 24 de novembro de 2009


1.       A NOSSA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

Democracia Participativa significa controle social, co-gestão ou autogestão.
Vejamos cada uma dessas modalidades. Controle Social significa gestão de políticas públicas pela população (pelos cidadãos) de uma localidade, com financiamento de órgão de governo, o que aproxima em muito do conceito de autogestão. Este conceito, que dá uma impressão de intransigência porque praticamente elimina a autoridade de um governo, foi elaborado na década e 1970, por Sherry Arnstein. Este autor criou uma escala que define nitidamente o que é participação do cidadão ou poder real da cidadania, definida em oito estágios:


 A co-gestão significa um degrau abaixo (a partir da escala de Arnstein) em relação ao controle social, porque se orienta pela relação de poder equilibrada entre governo e cidadãos na gestão de políticas públicas locais.
Em todas modalidades, a democracia participativa apresenta alguns elementos centrais, a saber:
÷      Estruturas colegiadas de tomada de decisão
÷      Monitoramento de métodos e resultados de políticas públicas
÷      Descentralização administrativa
÷      Estruturas híbridas no interior do Estado

Em relação ao último item apresentado, é preciso esclarecer que não se trata de conselhos populares,definidos por Trotsky como poder que rivalizava (o poder dual) com o Estado burguês num período revolucionário. Ao contrário, as estruturas híbridas de Estado são canais institucionais de participação da sociedade civil no interior do Estado. Não são, portanto, sovietes. Tanto que estão estabelecidas em vários artigos da Constituição Federal.
São eles:


Artigo 1º: representação ou poder direto do cidadão




Seguridade Social: artigo 194 indica, no seu inciso VII, o caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados



Saúde: artigo 198, em seu inciso III, indica a participação da comunidade nas ações e serviços públicos de saúde que integram a rede regionalizada e hierarquizada;
Política Assistência Social: no artigo 204 da CF, em seu inciso II, estabelece a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.
Há, ainda, outras orientações constitucionais no que diz respeito à educação (artigo 206, inciso VI), direitos da criança, adolescente e idoso (artigo 227, parágrafo 7). 


Seguiram-se as Leis Orgânicas da Saúde e da Assistência Social, o Estatuto da Criança e Adolescente, o Estatuto da Cidade, todos adotando o mesmo espírito participacionista, ou da democracia participativa. Este espírito também orientou a organização da estrutura de gestão das águas, do meio ambiente e do PRONAF (apoio estatal ao desenvolvimento da agricultura familiar).
A rede de gestão (ou co-gestão) formada envolve, hoje, 30 mil conselhos de gestão pública ou de direitos, inseridas na estrutura formal do Estado brasileiro. Levantamento recente do IBGE indicou que 75% dos municípios brasileiros adotam alguma modalidade de participação na condução das políticas públicas.
Os Municípios com população até 10 mil habitantes possuem, em média, 4,42 conselhos, chegando a 7,92 conselhos para aqueles com população superior a 500 mil habitantes.
Os conselhos de saúde (98% dos municípios), assistência social (91%), educação (91%) e direitos da criança e adolescente (72%) são os que apresentam maior inserção no país .
Os resultados sociais e mesmo de mudança do processo decisório das políticas públicas foram pífios até aqui. Pelo contrário, o aumento do valor do salário mínimo, segundo a FGV-RJ, teve um impacto muito mais significativo sobre a realidade social do país (impacto de 70% sobre ascensão das classes D e E para classe C) que as de transferência de renda ou oriundas desta estrutura de co-gestão.
O que acende um sinal amarelo, ao menos. Mesmo porque, muitas pesquisas recentes indicaram uma cultura política nacional conservadora ou até reacionária, demonstrando pouco impacto na cultura democrática e solidária do país.
No caso específico da educação, a título de ilustração, da população infanto-juvenil que freqüenta escola, 20,4% afirmam que precisam ajudar nos afazeres domésticos ou trabalhar para ajudar no orçamento familiar. Ainda mais: as desigualdades regionais persistem, assim como as desigualdades entre o meio rural e as cidades: a média de anos de estudo (acima de 15 anos) é de 4,3 no campo e 7,6 na cidade; o analfabetismo atinge 24,1% da população do campo e apenas 7,8% da cidade.
Tal situação incita a pensarmos mais adiante. Um rol de questões parecem se fazer necessário para criarmos controle público sobre a rede de gestão participativa. Destacaria as seguintes:

1 Quem fiscaliza os conselhos?

2 Por que não há eleição direta para escolha dos representantes da sociedade civil, evitando a formação de vínculos de fidelidade interna?

3 Por que os conselhos não são regionalizados ou possuem estruturas descentralizadas?

4 Por que não se impede que entidades que dirigem os conselhos sejam beneficiadas por recursos públicos que os próprios conselhos aprovam?

5 Como garantir uma ação pública, com estrutura territorial, em rede?

As perguntas indicadas sugerem uma agenda. Uma agenda que articule esta rede de gestão pública participativa. No que tange aos direitos da criança e adolescente, uma agenda que indique:

Articulação Política
  •  Intenção política em relação a esta rede de conselhos de direitos da criança e adolescente
  •  Criação de articulações entre eles, por regiões, por Estado, por redes inter-conselho
  • Substituição das estruturas de gestão atual (centradas nas figuras dos secretários de governo e ministros) pelas estruturas colegiadas dos conselhos
  • Punição das autoridades públicas que não cumprem as deliberações dos conselhos
  • Articulação dos diversos fóruns nacionais (de Reforma Política, de Participação Popular, Brasil do Orçamento) nos temas relacionados às pautas dos conselhos de direitos e/ou setoriais
Educação para a Cidadania

         Criação de rede de Escolas da Cidadania, estrutura de formação permanente dos conselheiros
         Socialização de experiências exitosas como OP Criança, Escola da Cidadania de Adolescentes, Educação Fiscal, Cursos à Distância, entre outras.

Monitoramento de Direitos e Políticas Públicas

         Avaliação nacional de todas frentes e programas que garantem os direitos 
         Sistema de monitoramento de resultados
         Centralidade na defesa da vida e direitos e não apenas a lei e as especialidades (sub-temáticas e regionais) de cada entidade e fórum de defesa e promoção de direitos. Este é o caso da adoção de política “Do pré-natal ao Primeiro Emprego”, que poderia substituir pautas fragmentadas e absolutamente técnicas (como o foco no detalhamento do sistema de informações, um tema de transparência do Estado que não poderia demandar discussões nacionais em detrimento de pautas específicas de avanço dos direitos e combate á exploração infanto-juvenil).

2. UM OUTRO PROBLEMA: A MUDANÇA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Uma constatação recente nos alerta e gera temor: a maioria dos movimentos sociais brasileiros transformou-se em organização popular. Não se trata de uma mera nomenclatura. As organizações são estruturas permanentes, com corpo administrativo, com orçamento planejado. Ao se transformarem em organizações, muitos movimentos sociais disputam o “mercado de financiamento” das ONGs.
Já um movimento social luta por novos direitos ou efetivação de direitos já legalizados, não possui hierarquia formal, seu método de tomada de decisão é marcado pelo assembleísmo ou democracia direta, se expressa pelo conflito.
Um movimento social se legitima pela pressão, pela mobilização social.
Contudo, nos anos 1990, as lideranças sociais se tornaram gestores. O Estado se retraiu e gerou parcerias com ONGs e entidades da sociedade civil (proposta de Estado Gerencial de FHC).
As iniciativas de educação popular (uma marca da organização popular para o controle social, desde o final dos anos 1970) se pulverizaram e, muitas vezes, se tornaram um fim (captação de recursos e sobrevivência das organizações) e não um meio para o aumento da democracia em nosso país.
As conferências de direitos, que se multiplicaram nos últimos cinco anos, passaram a adotar como pauta as agendas do governo federal, com raras exceções.
Simultaneamente, o Brasil emerge como a 7ª potência econômica do mundo e ganha status diferenciado no FMI. Diminuem os financiamentos externos para o Brasil e devem minguar nos próximos 5 anos (crise européia e dos EUA).
Fica, assim, a dúvida: estaremos construindo (ainda que involuntariamente) um mercado? E, ainda: o que tal projeção afeta na condução dos projetos políticos e sociais que desaguou no participacionismo inscrito em nossa Constituição e várias leis federais?
Vivemos, assim, três grandes riscos:


Risco 01: afastamento das lideranças sociais de suas bases (institucionalização sem representação)
Conseqüência: cooptação institucional do líder e desarticulação do projeto educacional

Risco 02: aumento do teor emocional do discurso da liderança para se legitimar como interlocutor do Estado – o discurso genérico
Conseqüência: esgotamento da capacidade de mobilização e emergência de formas neoclientelistas

Risco 03: limitação da pauta da liderança (o representante delegado, corporativo) – o discurso focalizado
Conseqüência: neocorporativismo e projeto educacional com formação de quadros e coesão da organização

O temor é de estarmos caminhando para abraçar o discurso da eficácia e eficiência, nos afastando da questão original que seria a reforma democrática do Estado (a “invasão” da sociedade civil).
Se assim for, estaremos substituindo a educação política para o empoderamento e controle social, por conteúdos técnicos de gestão e gerenciamento, nos afastando do que denominamos de educação popular para caminhar para a educação social.
A educação política, insisto, é uma questão central em todo projeto participacionista, porque dialoga com a cultura conservadora ou ambivalente de nossa população. Hoje, o currículo mínimo desta educação deve contemplar conhecimentos concretos, focados em:

¡      Saber gerar informações
¡      Saber elaborar projetos públicos
¡      Saber monitorar
¡      Saber articular e comunicar

Uma rede de escolas da cidadania que dialogue com o mundo real do cotidiano da vida social e política de nosso país é a exigência do momento. Porque afastamo-nos do mundo real e enredamos pelos escaninhos do Estado burocrático brasileiro. 
Retornar ao projeto original significaria uma “volta para o futuro”. Não é uma tarefa fácil. Mesmo porque, trata-se, reafirmo, de um diálogo franco com nossa cultura ambivalente, que oscila entre a tradição e a inovação, entre o conservadorismo moralista e a ousadia carnavalizada, entre a participação e espera da tutela.
O fato é que assim como a cultura política de massas é ambivalente em nosso país, nossa experiência recente de gestão e democracia participativa também se revelou ambivalente. O que faz de uma possível vanguarda e inovação parte integrante de toda vida política de nosso país. Somos inovadores, “ma non troppo”. Somos menos ousados e inovadores do que nos imaginávamos. Algo que, aliás, Chico Buarque e Ruy Guerra já haviam sugerido em Calabar, que utilizo para concluir este olhar crítico sobre nossas aventuras e desventuras:

Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito,
Desencontrado, eu mesmo me contesto.
Se trago as mãos distantes do meu peito,
É que há distância entre intenção e gesto.
E, se meu coração nas mãos estreito,
Me assombra a súbita impressão de incesto.
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadura à proa,
Mas o meu peito se desabotoa.
E, se a sentença se anuncia, bruta,
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa.

Postada originalmente em 03dez2009.

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