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sábado, 13 de fevereiro de 2010

A carnavalização da política brasileira

Por RUDÁ RICCI 


1- Carnaval como imaginário social e utopia brasileira

Uma das tentativas mais promissoras de explicação da ambigüidade na cultura política brasileira é a de Boaventura Santos. O autor retoma a leitura da carnavalização como elemento constitutivo da cultura nacional. Comentei brevemente este mote em artigo anterior (“A verdade que não pode ser dita”). Mas este tema deve ser mais explorado. Santos destaca esta característica de nossa lógica social como transgressão sem ruptura com a ordem. Como se faz, todos os anos, em nosso país, em data marcada previamente, que alimenta nossa ironia e cinismo. O Carnaval, afinal, é sempre emoldurado por gargalhadas ou sorrisos maliciosos, que falam sem dizer. Exagero e malícia. Mas muitos autores retomam esta tradição e sugerem que se trata de uma expressão da utopia popular, apartada dos rituais formais e institucionalizados.
Com efeito, a origem do Carnaval é uma manifestação catártica, de “purificação” (negação da humilhação e frustração cotidianas) pelo exagero, pela emoção explosiva, irracional, selvagem. Ao término do Carnaval se acreditava - principalmente na Idade Média - que se suspendia a carne (do latim carnelevarium), dando origem à quaresma. Não deixa de ser surpreendente que na Idade Média (conhecida erroneamente como idade das trevas) ocorriam duelos de confete (que aparece como confetti no carnaval de Roma na forma de "confeitos" de açúcar que as pessoas jogavam umas sobre as outras durante o corso nas ruas da cidade) desfiles de carros alegóricos e cavalos, tudo coroado com luzes de velas e tochas. Jogos, banquetes e bailes, fartos em comida e bebidas criavam um cenário louco, onde homens vestiam-se com peles de animais e corriam pelos campos, invadindo casas e propriedades. Era o horror dos Papas. Já em 1523, Carlos I baixou uma lei que proibia o uso de máscaras nessas festas. O medo da máscara, enfim, aparece desde cedo. Porque escondia verdades (que nem sempre poderiam ser ditas) ou fantasias e utopias. O carnaval é uma representação cômica. Kupchik sugere que a máscara procura, por isto mesmo, exorcizar o sinistro. Mas também auxilia a assumir um pecado pela presunção da inocência, já que ninguém sabe quem está sob a proteção do disfarce. Uma festa carnavalizada é uma transgressão autorizada, que rebaixa as autoridades, banaliza o poder instituído, cria novas identidades.
É esta a base para o filósofo Hans-Georg Gadamaer sustentar que se trata da arte do jogo. Jogo e máscara, utopia e transgressão, uma forma em latência que expressa conflitos e desacordos com a ordem, sem rompê-la, como se afirmasse uma identidade proibida ou um mundo paralelo ao da ordem social. O que traça um diagnóstico psicológico de nosso povo – se a tese em questão for acertada – dos mais complexos e instigantes. Porque se faz como uma resistência ou enfrentamento irônico, que se recusa ao confronto, mas age pela transgressão. A intenção implícita é andar sobre o fio da navalha.
Ora, por aí, pode-se sugerir que a carnavalização é uma visão de mundo. Dilmar Miranda afirma que é traço marcante do imaginário do povo brasileiro.
O carnaval, na verdade, se prestou, desde a Idade Média, para este fim, opondo-se dissimuladamente à cultura oficial sisuda, introspectiva e reflexiva. Pelo riso aberto, pela gargalhada, criava-se uma utopia de um mundo paralelo que se realizava à luz do dia, embora como evento e não como ordem social alternativa. Uma alegoria social e política, estratagema utilizado por Lewis Carrol, em Alice no País das Maravilhas.
O mais fascinante parece ser justamente a desritualização deste mundo paralelo e este lusco-fusco entre o mundo cotidiano – definido pela ordem e o poder dominante – e o mundo da transgressão cultural – que se expressa como cultura e desejo de massas em alguns momentos, interlúdio social e político.
Fascinante porque se diferencia do teatro, onde há atores e espectadores com papéis sociais definidos. Qual a expectativa, afinal, em relação às ações sociais de quem se entrega ao carnaval? A transgressão, a abolição do palco e das normas rígidas. A vida é representada pelo seu avesso. Uma utopia de liberdade, libertinagem e abundância. Dilmar Miranda propõe se tratar de uma liberação provisória, sem hierarquias. Daí negar todo e qualquer ritual, porque a carnavalização não dialoga com tradição. Mais que isto: são práticas marcadas pelo deboche, incluindo os próprios debochadores.

2. A Cultura Ambivalente: traço das práticas sociais e valores políticos brasileiros

Se a carnavalização é nosso traço cultural, então a festa de fevereiro é o alimento para o cinismo como base das relações sociais e políticas que se reproduzem ao longo do ano. E, por este motivo, não se confunde com as férias formais. É um ritual de iniciação, afirmação da lógica popular e reafirmação da baixa legitimação de nossas instituições.
Esta parece ser uma trilha analítica estimulante e que libertaria nossos estudos recentes das travas teóricas européias e norte-americanas, que procuram definir matematicamente o grau de estabilidade de nossa democracia. Fala-se em maturidade das nossas instituições a cada episódio em que sofremos um revés moral envolvendo autoridades e que não provoca desarticulação de toda arquitetura institucional do país. Mas se a carnavalização dialoga com um mundo paralelo, a legitimidade de nossas instituições estaria sempre em questão. Não por ser objeto de ataque, mas por ser objeto de recusa ou de pouca identificação por grande parte dos brasileiros. A manutenção de nosso sistema institucional não seria, portanto, uma prova cabal de maturidade.
Aprofundemos brevemente esta paralógica cultural.

Se a carnavalização transita entre a ordem e a transgressão, ao contrário do que supunham as teorias clássicas da sociologia, nossas instituições não seriam legítimas, mas também não estariam ameaçadas. As instituições seriam, assim, uma espécie de sofisma, aparentemente válidas, verossímeis, mas que não se firmam, não se inscrevem no inconsciente coletivo. Tornam-se ilusões, que seguem regras próprias, que não dialogam com esta lógica amoral da carnavalização. Porque instituições não podem ser marcadas pela provisoriedade, o avesso da ordem.
O que faz do discurso político debochado e irônico, resvalando no cinismo, um apelo ao inconsciente desta cultura carnavalizada, explicando porque o populismo brasileiro se afasta do convite ao revide, à agressão. Porque a cultura carnavalizada transgride sem agredir.

Enfim, o mundo paralelo da cultura carnavalizada não é instituinte. Nega, sem romper. Faz da representação algo provisório, uma concessão. Cria vertigens. Não se leva a sério. Algo que a política oficial brasileira jamais compreenderá.

Bibliografia

BAKHTIN, Michail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec/ UnB, 1999.
KUPCHIK, Christian Kupchik, “Danza Loco el Carnaval”, revista Quid, 14, Buenos
Aires, fevereiro de 2008.
MIRANDA, Dilmar. “Carnavalização e multidentidade cultural”, Tempo Social, Revista de Sociologia USP, 9 (2), outubro de 1997.
RICCI, Rudá. “A verdade que não pode ser dita”, Brasil de Fato, 17/03/08. Disponível em 13/02/10 na página http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/analise/201ca-verdade-que-nao-pode-ser-dita201d
SANTOS, Boaventura de Souza. Pelas mãos de Alice. São Paulo: Cortez, 1995.
__________________________ "A queda do angelus novus: fragmentos de uma nova teoria da história", Novos Estudos CEBRAP, 47, 1997.
TINHORÃO, José. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998.
SOBRE O AUTOR:
Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, Diretor Geral do Instituto Cultiva (www.cultiva.org.br), da coordenação do Fórum Brasil de Orçamento.
Blog: rudaricci.blogspot.com

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