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sábado, 31 de julho de 2010

Bolha de Consumo?

Por RUDÁ RICCI
Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa. E-MAIL: ruda@inet.com.br . SITE: www.tvcultiva.com.br . Blog: rudaricci.blogspot.com

O processo eleitoral que definirá o sucessor de Lula está se revelando dos mais pobres em termos de discussões sobre a agenda nacional para o próximo período. A personalização excessiva do embate e a lógica quase exclusivamente midiática inibem a reflexão sobre temas essenciais para avaliarmos a sustentabilidade das conquistas ocorridas no último período, como a emergência de um potente mercado consumidor interno, que alguns comparam com o que ocorreu com os EUA nos anos 1950. Embutido nesta necessária reflexão emerge o papel a ser desenvolvido pelo Estado, neste esboço de fordismo tupiniquim que se insinuou nos últimos quatro anos.
Se é fato que o Brasil vem diminuindo rapidamente o número de pobres (embora a desigualdade social aumente simultaneamente), também é fato que o que parece ocorrer é uma modesta distribuição de renda, à custa da classe média, tal como sugere Beatriz David, economista da UERJ. Segundo David, "a faixa entre 10 e 20 mínimos caiu de 2,45%, em 2004, para 1,59%, em 2008. Já os que recebem acima de 20 mínimos, em 2004 representavam 1,13% da PEA e, em 2008, eram 0,59%. Existe tendência à concentração até nos aumentos reais do salário mínimo, pois, desde 1997, a pobreza caiu 36%, enquanto o mínimo teve ganho real de 66%". Em outras palavras, embora o aumento de salário mínimo seja a principal causa da ascensão social das classes D e E (responsável por 70%, segundo a FGV-RJ, sendo que o Programa Bolsa Família é responsável por 16% desta ascensão), o impacto sobre a queda da pobreza não é linear.
As operações de crédito consignado aparecem como terceiro principal fator da ascensão social recente. Somaram R$ 2,19 bilhões em junho deste ano, 5,97% acima do mesmo mês de 2009, mas inferior aos R$ 2,32 bilhões de maio de 2010. Em junho, do total de operações de cartão de crédito e empréstimo pessoal, 428.319 mil foram feitas por segurados com renda de até um salário mínimo. Esses aposentados e pensionistas responderam por R$ 900,76 milhões das operações. Contrataram, em média, R$ 2.120,00 em empréstimo pessoal. Já os aposentados na faixa salarial de um a três salários mínimos fizeram empréstimo de R$ 3.010,00 em média. A faixa de aposentados e pensionistas que recebem acima de três salários mínimos contratou empréstimos em média de R$ 5.204,00. Do total de empréstimos concedidos em junho, 603.829 foram parcelados de 49 a 60 meses. Das 762.346 operações realizadas, 275.354 foram contratadas por segurados na faixa de 60 a 69 anos. Outras 177.731 operações foram assumidas por aposentados e pensionistas na faixa de 50 a 59 anos.
Aumento de salário mínimo, programas de transferência de renda e crédito consignado forjaram um potente mercado consumidor interno e endividaram todos segmentos sociais emergentes. A Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), produzido pela Confederação Nacional do Comércio, revelou que, em julho, 57,7% dos consumidores do País estão endividados – número maior que o registrado em junho, quando 54% estavam nessa situação. O cartão de crédito lidera a lista dos tipos de dívida dos brasileiros em julho. A PEIC revelou, ainda, que 70,4% dos consumidores endividados estão migrando do cheque especial para o cartão de crédito como fonte imediata de empréstimo pessoal. Segundo o Banco Central, em 10 anos, o cheque especial caiu como fonte de financiamento em 60% das famílias que contraem empréstimo com bancos, para 34%. Já são três cartões de crédito, em média, para cada brasileiro.
Todos os dados aqui apontados convergem para a explosão do crédito para pessoa física, fenômeno que teve início em nosso país a partir de 2006. Coincidentemente, este foi o ano da reeleição de Lula. Em 2010, pela primeira vez na série histórica produzida pelo Banco Central, o crédito para pessoas físicas superou o ofertado para empresas: 502 bilhões de reais (pessoas físicas) contra 499 bilhões de reais (empresas). O crédito que mais cresceu foi o para financiamento de imóveis (17,3% neste ano, para pessoas físicas), seguido pelo financiamento de carros (15%) e empréstimo pessoal (11,4%).
Lembremos que a bolha imobiliária que explodiu nos EUA em 2008 foi gerada por uma política de refinanciamento de pessoas físicas que chegou a somar um volume de crédito correspondente a 80% do PIB do país. Naquele ano, o crédito imobiliário disponível para os brasileiros não ultrapassava 4% do nosso PIB. Contudo, em maio deste ano, o crédito imobiliário já atingia 107 bilhões de reais, o que projetava 8% do PIB até o final de 2010. O setor estima que até 2014, ano da Copa do Mundo de futebol em nosso país,  o crédito imobiliário atingirá 500 bilhões de reais, algo ao redor de 11% do PIB projetado para 2014 (estimado em 4,54 trilhões de reais). Longe do volume de crédito que os EUA ofertavam no momento do estouro da bolha de consumo. Mas, assim mesmo, preocupante. Se o Brasil continuasse crescendo na oferta de crédito imobiliário como ocorreu de 2008 para 2010, ultrapassaríamos um volume de 50% do PIB nacional em financiamentos.
A questão posta, portanto, é de como sustentaremos este agressivo mercado consumidor. O gráfico a seguir possibilita a percepção mais nítida desta agressividade:



Este é o início do movimento de aumento de consumo iniciado em 2006. Entre 2003 e 2008, 34 milhões de brasileiros ascenderam para as classes A, B ou C. De 2009 a 2014, Marcelo Neri (FGV-RJ) estima que outros 30 milhões de brasileiros serão incorporados à esses segmentos sociais. A consultoria LCA projeta para 2020 um gasto de 5 trilhões de reais das famílias brasileiras, 130% acima do gasto atual, o que transformará nosso mercado interno no quinto maior mercado consumidor do mundo (atrás, apenas, dos EUA, Japão, China e Alemanha).
A ascensão da classe D para C dobra o consumo, em média, por família, de comida, bebidas e cigarros. Em 2014, a Classe C consumirá 451 bilhões de reais com vestuário, eletrônicos, alimentos e remédios. Em virtude do aumento do salário mínimo, as empregadas domésticas em pouco tempo se tornarão membros da classe média (a classe C, com renda familiar mensal a partir de 1.115 reais).
A ascensão da classe B para A gera aumento em 60% do consumo dos mesmos produtos, por família brasileira. As classes D e E brasileiras aumentaram os itens de consumo, incorporando às compras mensais iogurte, leite condensado e amaciante de roupa, segundo análises da Kantar WorldPanel.
A questão que fica é: como manteremos este consumo? Como este aumento de endividamento poderá ser sustentável, sem gerar o estouro da bolha de consumo nos próximos cinco anos?
A questão faz sentido quando analisamos a pauta de exportação do país, cada vez mais focada em commodities, que geram um mercado de trabalho interno de baixa renda e qualificação profissional.
Com efeito, a maioria dos economistas brasileiros indica que os mercados da China e Índia serão os importadores preferenciais dos produtos nacionais, economias que devem crescer pelo menos 10% e 8%, respectivamente, segundo estimativas da Tendências. E as commodities dominam a pauta de exportação brasileira para os dois países. No primeiro bimestre, o petróleo fez a diferença nos embarques para a China. As vendas brasileiras do óleo nos dois primeiros meses de 2010 alcançaram US$ 639,9 milhões. No mesmo período do ano passado foram US$ 90,6 milhões. Nas vendas para a Índia pesou o açúcar, com exportações que passaram de US$ 109,9 milhões para US$ 256,2 milhões. Para Castro, da AEB, porém, o desempenho do valor de vendas de açúcar não deve se manter. "Os preços estão caindo e o açúcar não deverá mais ser a sensação das exportações brasileiras, como se previa." Já nossos produtos manufaturados têm, na América Latina, seu mercado mais promissor. Entre os itens que puxaram as vendas brasileiras neste ano estão os automóveis, para a Argentina, cujos embarques saltaram de US$ 176,2 milhões no primeiro bimestre do ano passado, para US$ 376,9 milhões nos dois primeiros meses deste ano. Os carros representaram 14,2% dos valores exportados à Argentina no período.
Estaremos, portanto, vivenciando um período inicial de consumo que começará a revelar seu irracional endividamento nos próximos anos? Saímos de uma base de consumo reprimido que se esgotará até 2014? O Estado fordista tupiniquim será obrigado a financiar este endividamento?
Tais questões parecem de suma importância para serem respondidas pelo futuro governante maior de nosso país. As respostas indicarão o papel do Estado no próximo período. Poderá indicar o aumento da tutela estatal e concentração do manejo orçamentário pela União. Poderá, ao contrário, gerar um novo pacto federativo e, talvez, a concertação social para redefinirmos a estrutura do mercado de trabalho e pauta de exportações. Ou, ainda, pela inércia e omissão, gerar um descontrole que poderá causar o estouro da bolha de consumo que vai se arquitetando a olhos nus, similar ao risco do observador atônico de um ovo de serpente.

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