"TOMBAMENTO MUNICIPAL DE MIRACEMA: PRIMEIROS PASSOS"

 DEU NO JORNAL LIBERDADE DE EXPRESSÃO:

Centro Histórico de Miracema-RJ, fotógrafo Paulo Rodrigues. Ao fundo Solar Dona Brasileira. Ilustração do blogue.

O que leva um imóvel a ser protegido legalmente através do tombamento? Quais os valores que são levados em conta para a seleção do que representará no futuro a cultura de um lugar, sua paisagem? Alguns imóveis de determinado lugar são, indiscutivelmente, importantes para sua cultura e para a preservação da memória e das tradições. A Igreja Matriz, os colégios públicos, as sedes de instituições, dentre outros. Isto porque esses espaços são, desde a sua origem, palco de acontecimentos importantes na vida de cada cidadão. Porém, essa unanimidade não ocorre em relação aos imóveis particulares, mesmo aqueles associados a pessoas ou fatos significativos do lugar. Esses imóveis residenciais dentro do mesmo conjunto possuem sua importância relativa, sendo adotados critérios diversos para estabelecer quais daqueles são relevantes como definidores da paisagem e por sua importância subjetiva no campo cultural, ou seja, os dois principais quesitos abordados nessa seleção.

Exemplo disso é que nas primeiras iniciativas de tombamento de imóveis particulares em Miracema, foram selecionados, dentro da região central da cidade uma lista de imóveis que, por sua boa conservação até aquele momento, demonstravam a disposição de seus responsáveis em mantê-los, tornando o Tombamento Municipal, um mero reconhecimento do mérito de seus proprietários, com perspectivas de aproximação gradual com o poder público e com as políticas de preservação.

Seguindo os princípios previstos para o exercício da administração pública - Conveniência e oportunidade, adotou-se àquela época, evitar que o primeiro conjunto de imóveis a serem preservados por lei no município fosse motivo de divergências, questionamentos de ordem legal e polêmicas desnecessárias, que colocassem em risco essas iniciativas de importância futura. Desta forma, evitou-se a inclusão nessa primeira lista de imóveis, daqueles que apresentassem riscos iminentes ou aspectos de má conservação significativos. Essa estratégia se mostrou satisfatória, uma vez que nenhum desses tombamentos foi contestado à época, dando ânimo ao prosseguimento dessa política no município.

Entre os imóveis preteridos nessa etapa, encontram-se três exemplos, sempre citados por pessoas que acompanharam o processo. Naquela época não foram incluídos os imóveis correspondentes à Casa da Cultura (onde hoje se situa o Centro Cultural Melchíades Cardoso, em frente à antiga sede da Prefeitura Municipal), a antiga residência do jornalista e industrial Melchíades Cardoso (situada onde hoje existe a loja A Credilar, na Rua Direita) e até mesmo o Solar Dona Brasileira, em frente à Praça das Mães, considerado o imóvel mais antigo do município). O motivo é que esses três imóveis apresentavam sérios danos naquele momento, que eram entendidos como elementos dificultadores do exercício da preservação legal.

Mais tarde, com a desapropriação do imóvel do Solar Dona Brasileira, foi possível o tombamento e recuperação daquele importante exemplar arquitetônico, que é um dos únicos representantes da técnica construtiva ancestral, chamada de pau-a-pique, ou taipa, mais comum em centros históricos de origem colonial, daí sua excepcionalidade em Miracema.

O imóvel da casa da Cultura, apesar de na época já pertencer parcialmente ao Município, tendo sido no passado a sede do Tiro de Guerra de Miracema, apresentava inúmeros problemas de conservação, inclusive estruturais, que dificultavam sua adaptação aos usos de arquivo público e museu, que eram metas na época e exigiriam critérios rigorosos de segurança, impossíveis de serem atingidos com os recursos técnicos e financeiros da prefeitura na época. A solução para implantação desses equipamentos culturais veio com a conquista de recursos de ordem federal que possibilitaram a construção da atual sede do Centro Cultural Melchíades Cardoso, onde também funciona o Museu Ventura Lopes.

Por último, a casa do Sr. Melchíades de fato representava, à luz da história, um local de valor emblemático, por ter sido seu principal proprietário um dos responsáveis pelo movimento separatista que deu origem ao município: foi palco de encontros políticos, campanhas diversas e tomada de decisões que nortearam o município por décadas. Contudo, naquele momento, o imóvel se encontrava em péssimas condições, demonstrando desinteresse da família na preservação. Posteriormente, o imóvel acabou por ser adquirido por terceiros e demolido, dando origem ao imóvel comercial que lá encontra-se hoje. A memória de Melchíades é hoje tema de pesquisa permanente no Centro Cultural que leva seu nome, na forma de escritos, recortes de jornais, e outras fontes documentais de sua trajetória, disponíveis a pesquisadores interessados.

Tempos depois dessa primeira ação de preservação, que foi realizada num único decreto municipal no ano de 1995, adotou-se, já sob orientação do INEPAC, o conceito atual de preservação em vigor em Miracema, isto é, o do Conjunto Arquitetônico, Paisagístico e Urbanístico, com metas mais abrangentes, e a delimitação de um perímetro de especial interesse paisagístico, dentro do qual valeriam regras especificas de construção. Este modelo foi adotado e se encontra em vigor até o momento atual, que futuramente será objeto de um artigo específico desta coluna, dada sua complexidade.

Com este relato procuramos trazer à tona o espírito que conduziu esta primeira iniciativa de proteção ao patrimônio edificado de nosso Centro Histórico. Erros podem ter ocorrido, porém nunca injustificados ou movidos por más intenções. O Patrimônio Cultural, assim como qualquer manifestação da cultura é um conceito continuamente em mutação, sendo a cada época alvo de obstáculos e desafios.

Da Coluna "A Lâmpada da Memória", de Marcelo Salim de Martino, no jornal cultural de Miracema "Liberdade de Expressão", Nº. 268 - Ago/22. Fotografia de Paulo Rodrigues, incluída pelo blogue.