Por RUDÁ RICCI
- O que já se sabia, mas não era dito
O decreto tem como objetivo regulamentar as audiências públicas no processo de elaboração da proposta orçamentária de 2010 e do Plano Plurianual (PPA). Nas considerações iniciais do decreto, destaca-se a transparência “assegurada também mediante o incentivo à participação popular e a realização de audiências públicas”. Também cita a lei de diretrizes orçamentárias aprovada este ano (a LDO, de 20 de julho de 2009, em seu artigo 4º).
Talvez seja bem menos que as plenárias do OP porque são audiências públicas que serão realizadas antes de 30 de setembro, em cada subprefeitura da capital paulista. Também não aparecem como audiências deliberativas, mas como espaços que “destinam-se a receber sugestões e propostas relativas à elaboração da proposta orçamentária”. Serão poucas audiências, em tempo exíguo e com caráter consultivo.
Poderíamos dizer que é um arremedo do OP. Mas é muito mais.
Tanto que a bancada do PT da cidade de São Paulo correu para emitir uma nota explicativa. A nota diz:
“Decreto do Executivo publicado na edição de terça-feira (11) do Diário Oficial Cidade de São Paulo regulamentou a realização de audiências públicas para discussão e elaboração do orçamento municipal de 2010. O decreto regulamenta um artigo incluído na Lei de Diretrizes Orçamentárias por exigência dos vereadores do PT. A idéia da bancada petista foi resgatar parte da experiência do orçamento participativo, implantado na gestão Marta Suplicy e extinto pela atual administração, que permitia o debate com a população sobre quais obras nos bairros a Prefeitura de São Paulo deveria priorizar os investimentos. A gestão Serra/Kassab sempre criticou o orçamento participativo, mas agora teve que recuar após a pressão do PT.”
No dia seguinte, a ex-prefeita Marta Suplicy publicou na Folha de São Paulo um artigo em que critica a proposta de revisão do Plano Diretor da cidade de São Paulo, que tramita na Câmara Municipal (autoria do Executivo, PL 671/07).
Ora, qualquer leitor atento do mundo político perceberia uma espécie de orquestração para dar uma resposta a um decreto que parece roubar parte da identidade da esquerda paulistana.
Há, na nota da bancada petista, algumas ausências intrigantes, como não citar que o OP paulistano foi implantado pela gestão Luiza Erundina (primeira administração petista da cidade, mas hoje, no PSB) ou que a LDO é uma lei anual, o que nada impediria da bancada petista ter feito tal exigência muito antes. Mas estamos em ano pré-eleitoral. E o orçamento de 2010 de São Paulo será discutido com a população.
O que nos revela este decreto? Que o OP não é mais o mesmo. Não assusta a ninguém. E também não garante uma revolução na gestão de uma cidade grande. Muito pelo contrário. Talvez tenha se transformado em mais uma situação que dá vida à frase criada por Tomasi di Lampedusa: “tudo deve mudar para que tudo fique como está”.
O que teria ocorrido com a grande inovação na definição orçamentária dos anos 80? O que nós, que amávamos tanto o OP, temos a dizer?
2. O OP virou um ritual
O OP é mais uma novidade política dos anos 80 que virou ritual no início do século XXI. E como ritual, não é mais garantia de empoderamento da sociedade civil. Nem alterou profundamente os processos decisórios (em especial, de execução orçamentária) da gestão pública.
O que seria o OP, na sua origem? Uma experiência de democracia participativa que articulava mecanismos de democracia direta (as plenárias) com democracia representativa (os conselhos do OP, que acompanhavam a votação do orçamento e sua execução). Mas restrito ao âmbito do executivo. E, na maioria das vezes, do executivo municipal. Tivemos diminutas experiências de orçamento participativo estadual (Rio Grande do Sul foi a mais citada, mas tivemos participação efetiva na elaboração de planos plurianuais estaduais e uma única consulta pública do PPA federal, em 2003).
A pesquisa mais recente que temos sobre o panorama do OP no Brasil foi coordenada por Lenoardo Avritzer (UFMG), concluída em 2006. A pesquisa revela que ainda é uma experiência do centro-sul do país, como demonstra o gráfico abaixo:
A pesquisa revela, ainda, que é uma experiência majoritariamente petista:
A continuidade desta experiência, ao mudar o gestor na eleição seguinte, não ultrapassou o teto de 40%. É um índice elevado, mas que revela dificuldades para se constituir como crença de good governance em nosso país, ao contrário do que se imagina no exterior, em especial, na Europa, Índia e América Latina. Talvez, por ainda ser muito identificada com o PT. Em 60% das administrações petistas se reelegeram, o OP teve continuidade. Um índice que já revela algum problema de convicção. Mas nas administrações de outros partidos que haviam implantado o OP e que se reelegeram, o OP não foi mantido em mais de 10% dos casos.
A continuidade da experiência, significativamente, é maior em cidades pequenas, com até 100 mil habitantes (50,6% dos casos; sendo que em municípios com mais de 500 mil habitantes, a continuidade do OP não ultrapassa 10%).
Não superamos 5% dos municípios brasileiros que adotaram o OP.
A cultura da participação na elaboração do orçamento não se espraiou. Não se consolidou em nosso país. Segundo o IBGE, 75% dos municípios brasileiros adotaram algum tipo de participação na execução de políticas públicas. Mas o OP não se popularizou nesta mesma dimensão. Por qual motivo?
Primeiro, porque ficou restrito ao executivo. Poderíamos ter ampliado esta participação para a esfera do legislativo, onde se aprova efetivamente o orçamento. Mas não chegamos a tanto. Não criamos conselhos temáticos ou de direitos nas Câmaras Municipais. Não apostamos em parlamentos juvenis, como ocorrem na Europa. Não implantamos leis municipais que obrigassem o legislativo a realizar audiências públicas ou plenárias territoriais para definir prioridades orçamentárias. Os nossos vereadores temem que a participação popular roube seu poder, como se este não tivesse emanado do cidadão.
Segundo, porque o OP não delibera sobre o orçamento de custeio. E, mesmo o de investimento, não supera 10%, ficando na média de 4% do total. Mais, ainda, mesmo este diminuto recurso que é deliberado raramente é executado efetivamente. Os relatos de prefeitos que adotaram o OP são muito enfáticos: sobram obras não realizadas e deliberadas nas plenárias, perpassando anos a fio. Tal situação gera grande rotatividade e muita frustração. Em municípios menores, a cobrança é mais rotineira e, muitas vezes, menos agressiva, justamente porque as autoridades públicas são encontradas diariamente por uma grande parcela de seus eleitores. E também porque em grande parte, o Estado é o grande empregador em municípios menores. Enfim, os cidadãos não podem discutir a folha de pagamento, os custos de cargos de confiança, a manutenção da máquina pública, o que sugere a permanência da lógica de infantilização da sociedade civil.
Terceiro, porque outras modalidades de participação na gestão pública competem até hoje com o OP. Este é o caso dos conselhos de direitos e gestão pública. Em muitos municípios, as duas experiências competem entre si, na surdina e penumbra da política local. Em cidades grandes, a descentralização das plenárias do OP engole as deliberações dos conselhos de direitos e gestão pública. Uma possível superação seria a descentralização dos conselhos de direitos e gestão pública. Mas permaneceria outro impasse: a escolha de conselheiros raramente se faz por eleição direta, como no caso dos conselhos do OP. Assim, temos um conflito de legitimidade e abrangência da representação social dos conselheiros. Alguns municípios adotaram um ciclo temático para incorporar temas e direitos específicos. Outros incluíram os conselhos de direitos e gestão pública no conselho do OP. Mas a contradição permanece. Afinal, o conselheiro do OP não teria um mandato mais representativo que o conselheiro da política cultural do município?
Quarto, porque se trata de uma experiência que envolve poucos órgãos da administração pública. Em grandes municípios, como a cidade de São Paulo, não mais que três secretarias participavam ativamente e com freqüência, das plenárias do OP. A maioria das secretarias possui mecanismos e rotinas próprias para definir sua proposta orçamentária e até para executá-las. Há uma gama imensa de verbas vinculadas e mesmo fundos especiais que não são discutidos em plenárias do OP. Assim, poderíamos obrigar os executivos municipais a investir em fundos sociais (direitos da criança e adolescente, por exemplo), mas isto não ocorre na prática.
Quinto, porque as lideranças e representantes da sociedade civil não sabem governar. Não estudaram nos bairros ou escolas. Não sabem o que é um ciclo orçamentário. Não sabem elaborar indicadores de monitoramento de ações e programas públicos. E não existe qualquer iniciativa nacional (ou mesmo estadual ou local) para superação deste déficit formativo. As lideranças sociais de hoje não são meros líderes de mobilização. São formuladores e gestores públicos, porque conquistamos este direito na Constituição de 1988.
Sexto, porque o OP deixou de promover sua vocação: a reforma democrática do Estado. A sociedade civil até tentou avançar nesta direção. Elaborou proposta de lei, como é o caso da Lei de Responsabilidade Social, formulada pelo Fórum Brasil do Orçamento e que responsabilizaria a autoridade pública que não melhorar os indicadores sociais (denominados de “mínimos sociais”), sendo fiscalizado pelos conselhos de direitos já existentes em cada localidade. Mas, o que seria esta vocação? A vocação de substituir estruturas de gestão verticalizadas pelas estruturas horizontalizadas. E este é o tema mais complexo e delicado desta proposição que, justamente por este motivo, foi sendo deixada para uma outra encarnação.
O conselho de gestão pública é um órgão de Estado (não de governo), onde a sociedade civil e o governo local participam. No caso dos conselhos deliberativos, fica evidente que conformam um novo processo de deliberação e tomada de decisão de políticas públicas. Afinal, se são deliberativos e há representação governamental no seu interior, uma decisão é obviamente compartilhada pelo governo (que se posicionou quando do processo de deliberação). Assim, um secretário estaria subordinado à deliberação de um conselho.
No caso do conselho do OP, em grande parte dos casos, o governo tem direito a voz, mas não a voto (casos dos ex-governos petistas de Porto Alegre e São Paulo). Nestes casos, a situação é ainda mais evidente, porque se aproxima do conceito de controle social elaborado por Sherry Arnstein, em que o governo patrocina, mas a comunidade decide e governa.
Os conselhos (de OP ou não) são estruturas de co-gestão pública. E, neste caso, se confrontam com o processo decisório das estruturas de tipo “imperial”, vertical. Em outras palavras, a decisão solitária do gabinete de um determinado secretário de assistência social pode desautorizar as deliberações de um conselho de assistência social, porque estaria em dois espaços de gestão distintos.
A vocação dos conselhos seria, portanto, a de substituir o papel do secretário de governo como aquele que formula e delibera políticas. O desenho hipotético mais adequado seria o do conselho como órgão central de gestão e tomada de decisão e o secretário como executor das políticas deliberadas. Uma estrutura colegiada superior a estrutura de execução. Nesta situação hipotética, o secretário de governo seria uma figura menor que a dos representantes do governo no conselho de gestão pública. Poderíamos ter avançado nesta direção. Mas, paramos. E os partidos que criaram esta possibilidade reduzem seu escopo a notas lacônicas para afirmar que ainda são os donos da proposta do OP.
Por todos problemas estruturais citados acima, o OP foi se reduzindo a ritual. Perdeu a sua energia moral original. Em alguns casos, se incorporou ao sistema tradicional dos currais eleitorais, quando o executivo negociava, nos bastidores, as obras prioritárias com cada vereador que as apadrinhava em cada plenária do OP. Tudo porque a vocação do controle social foi cedendo espaço aos acordos da coalizão de governo. Também porque muitos governantes adotaram a lógica da precaução e prudência exageradas (nova denominação da realpolitik), temendo que a democracia direta se configure na organização de demandas sociais, ampliando a pressão sobre o difícil gerenciamento da máquina pública.
A vocação do OP é a de construir um novo processo decisório na gestão pública. É construir uma lógica que no exterior denomina-se structural holes. Não é pouco. E por este motivo, perdemos um tempo precioso a cada ano que passa.
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