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sexta-feira, 16 de abril de 2010

Neopatrimonialismo nas eleições de outubro

Por Rudá Ricci*

1. Neopatrimonialismo: o amálgama entre carisma e burocracia
A política nacional regrediu. A disputa política não se dá mais entre partidos, mas entre expoentes que se unem a líderes de partidos aparentemente adversários para disputar o poder no interior de sua agremiação. Lula se impõe sobre o PT, desmonta candidaturas regionais, exige que seu partido apóie candidatos que pavimentem sua coalizão presidencialista. Aécio Neves se debate contra os tucanos paulistas já que sua ascensão nacional depende desta estratégia. Ciro Gomes engole seco porque seu partido o quer fora da disputa presidencial que, por seu turno, flertava com Aécio Neves, do partido adversário da base política ao qual seu partido se integrou. Marina Silva disputa bravamente o controle e ideário do partido ao qual se filiou, o que cria constrangimentos às alianças locais de expoentes históricos do PV, como Fernando Gabeira.

Tudo porque os partidos políticos se desgarraram do cotidiano do homem simples, do cidadão não filiado ou militante partidário. E, assim, a disputa não se dando na base da sociedade, não tem porque se fazer a partir de idéias e projetos que unem aqueles que pensam da mesma maneira. A disputa se dá entre líderes de si mesmos que abrem espaços no cenário político nacional aos trancos e barrancos. As alianças por baixo dos panos são cada vez mais comuns. Voltamos no tempo. Vivemos, em termos de lógica partidária nacional, a emergência do neopatrimonialismo.

Simon Schwartzman, no seu livro “Base do autoritarismo brasileiro” desenvolveu o conceito. O patrimonialismo moderno, sugere, seria a dominação política por um estrato social sem propriedades. Em sociedades gelatinosas, como Gramsci gostava de nomear sua Itália (onde não teria se forjado claramente os interesses de classe), a burocracia pública se transforma no esteio da organização do desenvolvimento nacional. Uma sociedade estatizada (marcada pela estatolatria) seria, assim, fruto de interesses muito particulares, sem rumo certo, que não conseguem se pensar como nacional, como liderança de interesses difusos. Nos casos clássicos, as regras gerais que orientam a burocracia pública tenderiam a limitar o poder arbitrário de governantes e administradores, forjando a igualdade perante a lei e a objetividade da administração, em oposição a distinção pessoal.

Contudo, a situação brasileira é peculiar. Desenvolveu uma forte burocracia impessoal e controladora – que refuta a capacidade elaboradora e condutora da sociedade civil – permeada por forte personalismo. Uma trama inusitada que se filia à tradição lusitana, nossa herança política. Racionalidade burocrática somada à massas passivas geram o que Schwartzman denominou de regimes patrimoniais burocráticos modernos. Em situações de ascensão social pujante, como ocorre neste início de século XXI no Brasil, Tocqueville temia que os sistemas políticos baseados em normas estritas entrassem em risco, obrigando os governantes a repensar a lógica do processo decisório a partir de pactos sociais mais amplos, introduzindo demandas emergentes. Haveria, assim, uma tendência à emergência de elementos carismáticos do governante para conduzir tais massas desorganizadas.

Não estaríamos presenciando algo do gênero em nosso país?

Um estudo sobre planejamento educacional no Rio Grande do Norte, que adota como recorte temporal os últimos cinqüenta anos, ilustra a maneira como agrupamentos partidários capturaram o aparelho de Estado naquela região nordestina. Publicado pela editora Annablume e escrito por Carlos Alberto Nascimento de Andrade, este estudo é uma, dentre tantas ilustrações à disposição da ciência política brasileira, sobre o jogo de interesses particulares na formatação e condução de políticas sociais a partir de práticas neopatrimoniais de planejamento, o que pareceria um contrasenso.



2. A política brasileira se tornou neopatrimonialista

A última década reconduziu a prática política ao formalismo das instituições partidárias e ao Estado. A redemocratização do país havia, em seu bojo, sugerido e pleiteado a ampliação de espaços e atores no cenário político público, para além do Estado. Movimentos sociais, organizações comunitárias, câmaras setoriais, arenas neocorporativas, conselhos institucionais de gestão pública forjaram novos sujeitos e ampliação da institucionalidade pública. Mas, nos últimos dez anos, esta inovação regrediu, pouco a pouco. Retornamos à política como prática de profissionais. Os novos sujeitos se desarticularam ou sucumbiram à lógica tradicional do burocratismo público na tomada de decisões.

Contudo, a ascensão social e transformação do país em maioria de classe média possibilitaram a retomada do patrimonialismo fundido com a burocratização estatal.

Daí a emergência de líderes políticos, de origem partidária, mas que superam a popularidade de seus próprios partidos. O que lhes dá liberdade para transitarem, surpreendentemente, sobre as agremiações partidárias, promovendo alianças pouco compreensíveis ao eleitor comum, porque focadas na ampliação do poder pessoal e não necessariamente na disputa de idéias.

Este é o caso recente do lulismo em embate surdo com o petismo; de Aécio Neves com a poderosa fração paulista de seu partido; de Marina Silva procurando alargar seu espaço e alijar os tradicionais dirigentes do seu PV; de Ciro Gomes em embates absolutamente solitários e sem repercussão em seu partido. O Brasil se tornou um país de caciques com poucos índios. Uma imensa perfomance política para espectadores perplexos e desavisados espiarem de tempos em tempos, sem participarem efetivamente do espetáculo que se apresenta diariamente. Richard Sennet já alertava, em seu O Declínio do Homem Público, dos riscos de destruição do jogo da representação, muito próxima da mágica que ocorre na relação entre espectador e ator. Mesmo conhecendo a carreira do ator e sabendo que ele representa, para o espetáculo existir é necessário que o espectador acredite fielmente no personagem. Se deixe enganar, se envolver pela trama, sofrer com o drama, deixar suas emoções serem conduzidas. É um ato voluntário, de entrega à fantasia. É este jogo que gera a representação social e política. Um jogo de cena. Entretanto, quando o ator interpreta para si ou para seus pares, esta relação de entrega evapora no ar.

E é justamente este o risco que vivemos no momento em nosso país. Os que se candidatam a nos representar não se preocupam em criar empatia com os cidadãos. Interpretam para seus iguais. Para sua casta. As massas desorganizadas, que geraram a emergência desses personagens neopatrimonialistas na política brasileira parecem desconsiderar a origem de seu poder. Parecem considerar tarefa das mais fáceis a condução dessas massas a partir de jogos de cena. E partiram para empreitadas mais sofisticadas: o embate direto com seus iguais.

Trata-se, neste caso, da continuidade deste poder supremo que advém do neocorporativismo. Os personagens se deslocam de seus partidos. Insinuam acordos e alianças que se movem de acordo com seus interesses particulares. Aliados partidários se apresentam como adversários mais próximos. Adversários partidários se prestam ao papel de aliados para aumentar o poder pessoal de um líder oposicionista que procura cavar mais espaço no seu próprio partido. Um jogo de espelhos de difícil acompanhamento para quem se descuidar por um segundo. Aécio seria aliado de Serra ou seu inimigo de morte? Lula seria aliado de Patrus e Fernando Pimentel ou algoz em proveito da candidatura lulista (acima do seu partido)? Ciro Gomes é realmente do PSB ou um aliado de sangue de Aécio Neves? Por qual motivo aliados do PSDB são defensores mais ardorosos de uma chapa exclusivamente tucana para a disputa presidencial que os próprios líderes tucanos? Por qual motivo Paulo Hartung defendeu a aliança entre PT e PSDB se nem é filiado a esses partidos?

O cidadão é peça anexa, suplementar, em todo este jogo de cena.

Porque trata-se de jogo no interior da Corte. Os partidos políticos, no Brasil, mergulharam em seu ocaso. Não se relacionam com as ruas. São instrumentos neopatrimonialistas. Onde as lideranças são maiores que seus partidos. Maiores que seu passado. Maiores que os eleitores.



* Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa. 

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