Por Rudá Ricci
A situação ficou nítida quando da crise de queda do repasse do FPM e arrecadação que afetou os municípios brasileiros. Com as chuvas do início deste ano, o problema escancarou. O fato é que o município perde espaço como ente federativo autônomo. A execução orçamentária fortemente centralizada pratica por FHC e Lula, e que deve acelerar com a entrada de recursos da exploração Pré-Sal, faz dos prefeitos meros executores de programas federais. Trezentas prefeituras do país ainda não conseguiram pagar o 13º salário para seus funcionários. A maioria se concentra em Minas Gerais e nordeste, onde estão as pequenas prefeituras, quase sempre incrustadas em áreas rurais e que não conseguem produzir renda própria. A substituição do IPTU para o ISS como principal fonte autônoma de arrecadação das prefeituras sugere a precariedade de municípios que têm na agricultura sua principal fonte de produção de riquezas.
O caso da crise aberta com as chuvas é um dos motes. No ano passado, foram investidos em Minas Gerais R$ 85,9 milhões em ações pós-chuva, oito vezes mais do que em planos de prevenção a tragédias (R$ 10,3 milhões). Em Inhapim, questões burocráticas atrasaram a liberação de R$ 240 mil para a reforma de oito pontes e reconstrução de outras seis. A cidade, de 24 mil habitantes, foi inundada pelo rio Caratinga no dia 26 de dezembro. Cerca de cem famílias tiveram que deixar suas casas e buscar ajuda com parentes e amigos. Cerca de 1.100 imóveis precisam de reparos. Em Itanhomi, a 60 km de Governador Valadares, os prejuízos com as chuvas chegam a R$ 3 milhões. No fim do ano passado, o município decretou situação de emergência. Foram quatro fortes temporais, um em novembro e outros três em dezembro, que deixaram 40 pessoas desalojadas e 30 desabrigadas. Mais de 400 km de estradas na zona rural e rodovias de acesso ao município precisam ser recuperados.
O caso da queda de repasse do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) é o segundo mote da revolta dos prefeitos. No início do ano, os municípios tiveram uma queda de 2,5 bilhões de reais no repasse do FPM. Segundo a Confederação Nacional de Municípios, o acumulado do FPM entre 2003 e 2010 é o seguinte (de janeiro a outubro, com correção pelo IPCA, em bilhões de reais): 25,9 bilhões em 2002, subindo para 32,9 bilhões em 2006 e atingindo seu ápice em 2008 (42,7 bilhões). Daí por diante, com a crise aberta pelos EUA, o repasse caiu, nos dois anos seguintes, para 40,1 bilhões e 39,2 bilhões. Como se percebe, a partir de 2009, os repasses começaram a cair. Prefeituras de vários Estados brasileiros chegaram a fechar suas portas em protesto.
No primeiro repasse do FPM deste ano, realizado em 10 de janeiro, o governo federal injetou 294 milhões de reais nos municípios (10% maior que o repasse de 10 de dezembro de 2010). O aumento teve relação com aumento de vendas das festas de final de ano. Embora os prefeitos sejam céticos, receberam a notícia que neste ano o FPM será majorado em 29,66% (em relação a 2010), significando um repasse da ordem de 7 bilhões de reais. Em Minas Gerais, o governo estadual saiu na frente e renovou os critérios do chamado ICMS Solidário. Seis novas regras previstas na Lei 18.030/2009 vai engordar os cofres de 677 municípios mineiros. Outros 176 municípios perderão recursos (com Betim liderando a fila, num processo de compensação. As principais mudanças foram:
1) Repassa arrecadação de municípios mais ricos para beneficiar os mais pobres;
2) 4,14% destinados para municípios com baixos índices de ICMS per capita do Estado;
3) 0,25% destinados para áreas alagadas por hidrelétricas;
4) 0,10% para municípios com território penitenciário;
5) 0,10% para municípios com Conselho de Esportes;
6) Os municípios que tratarem lixo e esgoto terão outro aumento de repasse.
Na outra ponta, municípios mineradores perderam: os repasses caem de 0,11% para 0,01%.
A revolta chegou a tal ponto que prefeitos petistas do sul de Minas Gerais anunciaram a criação de um movimento municipalista. Minas Gerais é o Estado onde o partido da Presidente da República conquistou mais prefeituras: 107. E justamente aqui o calo dos municípios doeu mais. O que demonstra que não se trata de um problema privilégios partidários, mas de concepção de pacto federativo.
O que parece ser cada vez mais claro é que os dirigentes do Executivo Federal desconfiam dos municípios como indutores do desenvolvimento. A estratégia de fomento e orientação de investimentos públicos deveria, nesta formulação, ser tarefa da União. Daí a concentração orçamentária que já atinge 75% do total do orçamento público. O mesmo ocorrerá com o Fundo Social do Pré-Sal, que movimentará 15 bilhões de reais por ano (ou o mesmo que um PAC anual) e que será totalmente coordenado pelo Comitê Gestor que envolve apenas órgãos federais.
Os prefeitos sentem na pele que se transformam em executores de programas federais. Em época de eleição são procurados por candidatos à governador, presidente, deputados e senadores. Porque os prefeitos é que efetivamente mobilizam votos (com raras exceções). Passadas as eleições, voltam à condição de meros gestores de programas estaduais e, principalmente, federais. O que destrói a autonomia dos municípios como entes federativos autônomos.
Marta Arretche vem se dedicando aos estudos da relação entre descentralização e federalismo (cf. Marta ARRETCHE. Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. Rio de Janeiro/São Paulo, Editora Revan/FAPESP, 2000. 304 páginas). O que seus estudos revelaram que os anos 1990 diminuíram o ímpeto do processo de descentralização de políticas públicas iniciado na década anterior. E, mais: que este processo nunca foi linear e muitas vezes foi inteligível. A autora se surpreende ao perceber que São Paulo possui níveis de descentralização mais baixos que o Ceará ou ao se debater com o exitoso processo de descentralização de políticas educacionais confrontados com o fracasso da descentralização dos programas habitacionais. Ao tentar analisar tais incongruências, Arretche descobre a chave de explicação do problema por que passam os municípios brasileiros: nossa organização federativa, marcado por barganhas. Como municípios (e mesmo Estados) possuem desigualdades estruturais e administrativas profundas, a descentralização exige incentivos federais e estaduais. E identifica nos governos estaduais o papel mais destacado para aumento do poder de ação dos municípios. A autora resume:
"[...] a capacidade fiscal e administrativa das administrações locais [estados ou municípios] influi no processo de reforma; mas, estas variáveis não são determinantes em si mesmas. Seu peso varia de acordo com os requisitos postos pelos atributos institucionais das políticas que se pretende descentralizar, vale dizer, dos custos operacionais implicados na sua gestão, das dificuldades à transferência de atribuições derivadas do legado das políticas prévias e das prerrogativas legais estabelecidas constitucionalmente. [...] No entanto, estratégias de indução eficientemente desenhadas e implementadas por parte dos níveis de governo interessados nas reformas podem compensar obstáculos à descentralização derivados dos atributos estruturais de estados e municípios ou dos atributos institucionais das políticas." (pp. 73-74).
Ora, o problema não é partidário, portanto, mas de estrutura do pacto federativo. O fato é que o processo de descentralização de gestão de programas governamentais iniciado em 1980 gerou uma nova barganha política. Barganha iniciada pelos entes federativos superiores: o município aceita a descentralização e recebe algum incentivo, mas apenas para a execução. Não formula, não avalia autonomamente e, ainda, é obrigado (ainda que implicitamente) a fazer campanha eleitoral para seu “padrinho”. No limite, se cala. E, ao se calar, o prefeito perde autonomia política. Nem Raimundo Faoro imaginava que o Brasil democrático criaria algo tão engenhoso para reproduzir o modelo da Coroa Portuguesa.
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