O blogue traz uma entrevista realizada com o epidemiologista Cesar Victora, professor emérito da Universidade Federal de Pelotas, que venceu o Prêmio Richard Doll 2021, principal reconhecimento mundial concedido pela Associação Internacional de Epidemiologia (IEA, na sigla em inglês) e foi citado pelo neurocientista Miguel Nicolelis, como um dos maiores epidemiologistas do mundo.
Abaixo destaco alguns trechos da entrevista realizada pela jornalista Cristiane Segatto, colunista da Uol, de forma que possa despertar reflexão de forma geral sobre a condução da saúde pública brasileira, seja nos municípios, estados e, como não citar, no próprio governo federal. A entrevista completa pode ser lida aqui.
TRECHOS DA ENTREVISTA
O Brasil apostou no pior caminho e segue errando no enfrentamento da pandemia?
O principal erro é o negacionismo expresso muito bem pelo presidente da República. Achavam que não ia ser uma epidemia grande. Em 40 anos de epidemiologia aprendi a nunca me atrever a prever quantas mortes haverá em uma epidemia. Um agente infeccioso novo como o Sars-CoV-2 poderia tanto ficar restrito a poucos lugares, como se espalhar rapidamente. Existem alguns modelos preditivos que podem ser úteis, mas nunca dá para apostar nada. O negacionismo fez com que o Brasil não tentasse conter a epidemia no começo.
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Em um artigo publicado na Nature Medicine no mês passado, você e Pedro Hallal defendem um lockdown nacional de três semanas. Isso é viável?
Sendo bem realista (e não otimista), o que temos que fazer é comprar o máximo possível de vacinas. E investir mais. Já perdemos oportunidades incríveis devido ao negacionismo. O Brasil não vai fazer um lockdown de três semanas. Deveria fazer. Nós defendemos isso, mas o Brasil não vai fazer. Nosso presidente não vai começar a usar máscara e fazer distanciamento social. Isso está fora de cogitação. Creio que temos o primeiro presidente do mundo a dizer que não vai se vacinar. Enquanto isso, os Estados Unidos estão distribuindo até cerveja para estimular mais gente a se vacinar. Estão fazendo o possível para vacinar todo mundo.
É fundamental alcançar uma cobertura vacinal alta, certo?
A vacinação tem duas funções. A primeira é a proteção individual. Nenhuma vacina dá 100% de proteção, mas vacinar diminui a transmissão. Se a cobertura vacinal for alta (se 80% dos brasileiros se vacinarem), a transmissão vai diminuir dramaticamente. Basta ver o que aconteceu em Serrana, no interior de São Paulo. Os estudos feitos lá mostram que a vacinação em massa funciona. Enquanto tivermos esse governo, o que podemos fazer é incentivar a vacinação e tentar comprar o máximo possível de vacinas.
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Qual é a sua visão sobre a forma como o governo federal lidou com a crise de Manaus?
Aconteceu algo muito ruim por falta de competência das nossas autoridades sanitárias. Desde a Idade Média, os epidemiologistas fazem cordão sanitário quando surge uma doença nova. Fecham a cidade. Isso tem que ser feito quando surge uma nova variante que gera preocupação. Existem muitas variantes. Nem todas elas são motivo de preocupação, mas a P1 é. O que o governo fez? Como as unidades de terapia intensiva estavam cheias, ele pegou os pacientes das UTIs e espalhou pelo Brasil inteiro. O governo poderia ter montado hospital de campanha, mandado oxigênio, mas jamais espalhar ativamente uma variante pelo país.
Por que isso aconteceu?Creio que por falta de conhecimento epidemiológico. O Ministério da Saúde está completamente desaparelhado de pessoas competentes. O governo tinha que ter proibido a saída de voos de Manaus. Só assim teria sido possível controlar essa variante. É muito triste que doentes morram em uma cidade por falta de UTI, mas espalhar a variante pelo país é algo gravíssimo. Manaus tinha que ter feito um lockdown de duas semanas, sem dúvida nenhuma. Claro que é preciso ter um apoio social e emergencial para as pessoas que trabalham na rua no dia a dia. É preciso fazer isso junto. Sem lockdown de verdade (não esse de quinta até domingo), não é possível controlar um ciclo inteiro de transmissão da doença.
Viramos uma ameaça global?
Em um lugar como o Brasil, onde algumas pessoas estão imunizadas e outras não e ninguém pratica o distanciamento social como deveria ser, a variante encontra as condições ideais até para fazer o escape vacinal. Isso é importante: as variantes que existem até agora, com poucas exceções, não escaparam das vacinas. Elas são menos suscetíveis às vacinas, mas as vacinas têm efeito. A variante da África do Sul escapou da vacina Oxford/AstraZeneca, mas em outros lugares elas não escaparam ainda. Viramos uma ameaça global.
Como você se sente ao conversar com colegas do Exterior?
É muito frustrante saber que poderíamos ter lidado muito melhor com essa pandemia. O país investiu muito em ciência a partir dos anos 90. Criamos um grande número de cursos de pós-graduação. Formamos milhares de doutores. Em 2011, escrevi uma série de cinco artigos para a revista The Lancet junto com alguns colegas. O cenário de avanços na saúde pública era positivo. Todo mundo adorou saber como o Brasil, com seu sistema universal de saúde, havia conseguido reduzir a mortalidade infantil e praticamente acabado com a subnutrição de crianças. O programa de aids era exemplo para o mundo inteiro, assim como o nosso programa de vacinação. Hoje o que vemos é só retrocesso.
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