Miracema do Aterro e do Desterro
Terezinha Tostes Lopes
Estive em São João del Rey no início da década de 80, após ouvir muitas histórias de idas e voltas ao Brasil de presos políticos e aprender o Hino da Anistia, O Bêbado e a Equilibrista. Eu tinha pouco mais de 20 anos e sentia que a Terrinha me escapava pelas mãos. Era jovem e precisava viver outros carnavais. Minha fantasia? Foi um blusão preto me deixado de recordação por um amigo mineiro com quem troquei alguns beijos e amassos. O adereço era muitos, mas muitos mesmo adesivos pelas Diretas Já.
Era a terra do Tancredo, aquele sujeito franzino que conheci nas propagandas políticas do antigo e legítimo MDB pela televisão dos anos 70, cheia de chuviscos. Aprendi até a cantar alguns jargões daquela época, coincidentemente sempre do MDB.
Mas Tancredo, naquela época, ainda não era o Presidente que não foi.
Retornei a São João del Rey por esses dias e me assustei. Aquela cidadezinha gostosa que nos fazia escalar ladeiras, atrás das alvoradas que arrastavam casais embebecidos desaparecera. Eu fiquei, a princípio, assustada, mas nada triste. Percebi que, mesmo crescendo, a cidade se respeita em relação à sua história. Souberam crescer, permitiram-se crescer sem dor. Onde parei, à procura por assistência técnica para meu celular que havia sofrido um apagão, encontrei um shopping, com várias redes comerciais, bancos e na fachada, rodeada por uma linda chaminé, uma praça de alimentação. Achei interessante porque todas as vezes que passo pela chaminé da nossa antiga usina me vem um projeto à mente, sonho para aquele grande pátio uma bonita área de lazer e por que não comércio? Sim, pois bem sabemos que “boniteza” não põe mesa.
A Terrinha precisa de investimentos inteligentes e respeitosos. Sei que São João del Rey teve um Senador Tancredo e, nós, um Senador Dirceu que não era de Marília, mas era de Miracema, que tivemos uma usina de açúcar que não pode ser lembrada por seu cheiro de vinhoto e nem ser substituída por chorumes de lixos vizinhos.
Ao retornar à Terrinha vi parte de meu sonho se realizando através do movimento no nosso jardim, uma exposição de carros antigos, rodeada por crianças brincando, casais passeando, artesãos surgindo, uma bela senhora de mais de 90 anos expondo seus trabalhos manuais, dizendo que bordara um vagonite até tarde naquela véspera para trazé-lo para a praça.
Esse gesto de dona Chicralina ou dona Chica me tocou muito, fiquei pensando por que as pessoas complicam tanto coisas tão simples. Vendo dona Chica ali, sem a menor pretensão a não ser marcar presença, melhor dizendo marcar vida, voltei lá na escadaria da Igreja de Nossa Senhora das Mercês, em São João del Rey, quando, após subir uma infinidade de degraus, ofegante, encontrei Deus naquele ar purinho, naquele sol convidativo, naquela igreja acima de um antigo hospital onde passei por pessoas chorosas.
Para completar, bebi um gole de água e pensei, que cara genial esse Deus que nos deixou ar, água, sol, verde, arte e simplicidade que jogamos fora a pedido do inimigo.
Miracema não pode viver à mercê de amadores e especuladores.
Nossa Senhora das Mercês rogai por nós; Nossa Senhora do Desterro, livrai-nos dos Aterros (sanitários). Amém.
Dedico esse texto a todos miracemenses e amigos que ainda não fizeram pacto com o diabo.
Publicado no Jornal Liberdade de Expressão, edição de julho/2022.
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