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quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O MUNDO RURAL À ESPERA

Por RUDÁ RICCI
Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa. E-MAIL: ruda@inet.com.br . SITE: www.cultiva.org.br . Blog: rudaricci.blogspot.com



1.Um Mundo Mítico


No seu livro Galiléia, o médico Ronaldo Correia de Brito relata, através do personagem Adonias, o sentimento de muitos brasileiros nascidos no meio rural e que, um dia, abandonaram a terra pelo chão de asfalto. Bem sucedido, o também médico Adonias, afirma:
"Vago numa terra de ninguém, um espaço mal definido entre campo e cidade. Possuo referências do sertão, mas não sobreviveria muito tempo por aqui. Criei-me na cidade, mas também não aprendia a ginga nem o sotaque urbanos. Aqui ou lá me sinto estrangeiro".
O meio rural brasileiro é marcado por tragédias. Os romances retratam melhor que qualquer estudo. De Os Sertões à Lavoura Arcaica, todos são dramáticos e trágicos. Por muitos motivos. De 1965 a 1985, mais de 32 milhões de brasileiros que moravam no campo foram obrigados a migrar. Nos anos 80, o agronegócio floresceu e a cultura rural brasileiro tornou-se “country”.
Mas a tragédia rural continua. Quando pesquisava para elaborar minha tese de doutorado, colhi inúmeros depoimentos de lideranças rurais que sugeriam o quanto sua personalidade inovadora e questionadora se chocava com o ritmo e a lógica da cultura rural. Algo muito mais cruel e profundo que a dicotomia das análises políticas e até mesmo sociológicas.
Num dos depoimentos, uma líder da agricultura familiar rural do sudeste relatou o conflito que viveu ao visitar a irmã (que residia na cidade), num dia de Carnaval. A irmã a vestiu e a levou ao baile, num clube. Tinha uns 15 ou 16 anos de idade, na época. Quando retornou à sua comunidade rural, sofreu uma espécie de júri de inquisição. Foi questionada pelos líderes, familiares ou não, numa roda de repreensão. Algo formal, um conselho comunitário que poucos urbanos deste século compreenderiam. Mas algo assim já foi relatado em “Nós, cidadãos, aprendendo e ensinando a democracia”, livro publicado por Maria Conceição D´Incao e Gerard Roy, após vivenciarem as tortuosas relações sociais no interior do assentamento rural de Porto Feliz, em São Paulo.
Também presenciei o desespero de um grande líder sindical rural pouco antes de retornar ao campo, quando terminava seu mandato de dirigente nacional. Fiquei surpreso com o desmonte emocional deste líder que presenciei em tantas reuniões com sua objetividade, sisudo, até mesmo frio e calculista. Ele dizia que havia ficado tanto tempo fora da roça que temia o que encontraria ao retornar. Não tinha feito melhorias no trator, no maquinário, até mesmo nas sementes que utilizava. Temia a falência. Temia pelos filhos. Os filhos fazem parte constante do projeto de vida de um agricultor. Não há exatamente um futuro sem filhos e família. A solidão é um corte no ciclo da vida. Um ciclo de vida que é a própria produção rural e que se estende para a lógica da vida familiar. 
O mundo rural é místico. Místico em função deste ciclo da vida. A terra sempre diz algo. Assim como os céus. Os homens do campo procuram interpretar os sinais da natureza, ainda hoje. Em momentos críticos, a mística é uma certeza maior que qualquer outra. Vivenciei, nos anos 80, um líder de uma comunidade rural dizer que havia parado de plantar porque havia sinais do fim do mundo: as estradas que pareciam cobras negras rastejando pela terra, os fios de alta tensão que pareciam teias de aranha gigantes e a água do reservatório que inundaria todo o mundo (inclusive a barragem de Segredo, onde estava sendo construído o reservatório). Quem havia lhe dado esta certeza foi José Maria, o líder messiânico da Guerra do Contestado. Fiquei pasmo. Eu havia acabado de me formar em sociologia. Sabia que a Guerra do Contestado havia terminado em 1916, uns 70 anos atrás, possivelmente a idade daquele senhor que falava pausadamente, com firmeza e a certeza do mundo. Ali percebi que ele não mentia. Ele acreditava neste mito. Explicava seu mundo. Na sociologia aprendemos que o mítico gera ações sociais concretas. E é mais freqüente do que se imagina.
Enfim, o mundo rural é trágico, épico e mítico.

2. A indústria invade o rural
Contudo, o mundo moderno é urbano. E, nos anos 70, através do crédito rural público, a indústria invadiu o mundo rural. O campo virou consumidor da indústria. Indústria de tratores, insumos químicos, sementes selecionadas. Nos anos 80, subordinou o campo à cadeia agroindustrial. John Wilkinson desenhou esta cadeia industrial que invade e apequena o mundo rural. O esquema explicativo que criou revela o lugar do mundo rural a partir de então:


 Digitalizar0009
Se é verdade que o Produto Interno Bruto (PIB) do agronegócio registrou no primeiro trimestre de 2009 uma queda de 0,53% ( segundo levantamento feito pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil-CNA) este reflexo da crise mundial não retira a importância avassaladora do agronegócio na economia brasilera, a 7ª do mundo, segundo cálculo do Banco Mundial. Em 2009, a participação deste segmento será próxima de 2008: 26,46% do PIB Brasil.   


Agronegócio
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
Insumos não agrícolas
5,69
5,79
6,20
6,57
6,60
6,21
5,99
6,31
Agropecuária
28,02
28,82
29,64
31,12
30,09
28,47
27,74
28,84
Produção utilizada como ins.
4,24
4,36
4,50
4,73
4,57
4,31
4,20
4,37
Produção Vendida
23,79
24,45
25,15
26,40
25,52
24,16
23,53
24,47
Indústria
33,09
32,28
31,39
30,31
31,05
32,61
33,37
32,28
Distribuição
33,19
33,11
32,76
31,99
32,26
32,71
32,90
32,57
Total de Insumos
9,93
10,15
10,70
11,30
11,17
10,52
10,20
10,68
Fonte: CEPEA-ESALQ-USP


  1. O campo esvazia
Segundo dados da ONU, em 2050 a população rural do Brasil vai despencar dos 29,5 milhões, registrados em 2005, para 16,3 milhões. Em contrapartida, a população urbana passará de 157,3 milhões para 237,7 milhões, saltando de 84,2% das pessoas vivendo em cidades para 93,6%. Em 1.747 municípios brasileiros a população diminuiu. Esse esvaziamento de 32% da nossa rede de cidades preocupa pelo fato em si e pelas conseqüências que produzirá sobre os municípios nos quais a população vem crescendo em ritmo muito veloz. As cidades médias.
Podemos estar vivenciando um novo ciclo de inchaço urbano, tal qual ocorreu até meados dos anos 80. Mesmo que a população em êxodo seja agora menor, o impacto poderá ser tão violento quanto foi no passado porque englobará cidades com 100 mil, 300 mil habitantes. Se as grandes cidades brasileiras criaram mecanismos de adaptação desde os anos 70, não ocorreu o mesmo com cidades médias. Temos exemplos recentes, como a explosão de violência urbana em Ribeirão Preto, logo após se transformar na capital da Califórnia Brasileira. No Paraná, estudos registram o mesmo em Londrina. Cidades médias do Vale do Aracaú ou Baturité, no Ceará. São muitos exemplos. Na maioria, o setor terciário cresce vertiginosamente. E o mundo rural vai sendo engolido.
A partir de 1970, as cidades médias têm aumentado consistentemente mais que as outras, e mais recentemente têm passado a crescer mais ainda em termos relativos. Entre 2002 e 2005 as cidades médias cresceram 1,28 ponto percentual de participação no PIB enquanto as cidades com população acima de 500 mil habitantes tiveram a sua participação no PIB reduzida em 1,64 ponto percentual. Em 2002 as cidades brasileiras com população superior a 500 mil tinham 43,62% do PIB e em 2005 esse percentual abaixou para 41,93%. As cidades médias em 2002 tinham 25,74% do PIB e em 2005 esse percentual passou para 27,13%. Já as cidades com população inferior a 100 mil em 2002 tinham uma participação no PIB de 30,63% e em 2005 essa participação passou para 30,93%. A taxa média de crescimento do PIB do município nesse mesmo período foi de 1,55% para as cidades com população acima de 500 mil, 4,71% para as cidades médias e 3,22% para as cidades com população menor de 100 mil.
As cidades médias também se destacam no crescimento do número de habitantes. Em 2000 as cidades com número de habitantes superior a 500 mil tinham 29,6% da população brasileira e em 2007 essa participação passou para 29,25%. Já as cidades médias que tinham 23,45% da população brasileira em 2000, sete anos depois saltaram para 24,36%. E as cidades com menos de 100 mil habitantes caíram, no mesmo período, de 47,49% da população brasileira para 46,39%.
Percebe-se, portanto, que as cidades grandes diminuem seu poder de atração e as cidades pequenas mínguam. No período de 2002 a 2005, o crescimento médio da população nas cidades grandes, médias e pequenas foram 1,43%, 2,06% e 1,15%, respectivamente. O PIB per capita teve um crescimento médio nesse mesmo período para as grandes, médias e pequenas cidades de 0,42%, 2,85% e 2,08%, respectivamente.
Enfim, a cultura rural está cercada. E cada dia mais estrangeira em seu próprio país.

Mas é justamente aí que pode renascer. Justamente porque o tema do século é a sustentabilidade. Sustentabilidade energértica e ambiental. Há, ainda, uma evidente saturação do urbanismo. Seja pela solidão urbana, pelo anonimato na multidão, pela competitividade que corrói o caráter (segundo Richard Sennett), pela mercantilização da vida. A fuga para condomínios que relembram a cultura rural se alastra pelas regiões metropolitanas e, agora, para as regiões circunvizinhas às cidades médias.
O rural estaria se recriando? Possivelmente não.

Não porque o mundo rural é sinal de atraso. Vivemos esta síndrome do Jeca Tatu, o desleixado e indolente símbolo do mundo rural brasileiro. Um erro de interpretação que alimenta uma profunda esquizofrenia cultural. Que, por sua vez, alimenta a parca formulação de políticas públicas para o meio rural.
Não conseguimos elaborar políticas sociais integradas no meio rural. Avançamos nas diretrizes educacionais do campo, mas não avançamos numa política de saúde ou cultural. Por qual motivo não temos centros culturais rurais?  Ou qual o motivo para inexistência de centros de saúde rurais? Mesmo na área educacional ainda permanece a noção que escolas rurais são tranpolim do professor iniciante.
Pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade Federal do Rio Grande do Sul sugerem que em muitas comunidades rurais, 80% dos estudantes que superam a 4ª série primária e partem para as escolas urbanas, nunca mais retornam ao campo. Sentem vergonha do mundo “sujo e sem futuro” do mundo rural. O currículo das escolas gera êxodo, afinal.
A falta de leitura e valorização do mundo rural amplia a esquizofrenia cultural e invade os governos. Como explicar a esquizofrenia de um Ministério da Agricultura para o setor empresarial-patronal e um Ministério do Desenvolvimento Agrãrio para a agricultura familiar? Numa leitura mais otimista, poderíamos aventar a possibilidade do mundo rural se alojar no MDA. Como se estivesse à espera de se tornar um foco governamental. Ou mesmo percebendo que seu lugar é este. E basta.
Há possibilidades, é verdade. Como as iniciativas de organização por bacias ou microbacias hidrográficas. Seria um passo importante. Poderíamos pensar políticas públicas integradas a partir daí. Subindo na escala federativa, daí poderia surgir a unidade ministerial. Poderíamos pensar em currículos escolares que adotassem as microbacias como unidade de pesquisa e estudo, avançando e complexificando a Pedagogia da Alternância.
As escolas rurais poderiam se tornar centros culturais das comunidades rurais. E poderíamos modernizar o campo sem romper com a cultura rural.
Poderíamos.
Mas sejamos sinceros. Não há nenhum sinal deste bom senso no nosso horizonte.
E o mundo rural continuará à espera.

Um comentário:

Adalberto Day disse...

Angeline
Parabéns pelo seu esforço de proporcionar principalmente aos habitantes de Miracema, belas postagens, com conteúdos sempre visando o bem comum.
Adalberto Day Cientista social e pesquisador da história de Blumenau SC

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